domingo, 18 de abril de 2021

Hans Küng: o teólogo mais católico, o mais universal

Crónica de Bento Domingues 
no PÚBLICO



"Hans Küng realizou-se como verdadeiro e apaixonado teólogo católico. Ao tentar calá-lo, o Vaticano perdeu a voz que o tentava alertar para aquilo que era urgente corrigir."

1. Há filósofos e teólogos famosos que dão trabalho para serem entendidos em vida e, sobretudo, depois da morte. Suscitam, por isso, obras de iniciação ao seu hermético pensamento e alimentam gerações e gerações de comentadores que se julgam donos da boa interpretação do mestre venerado.
Seria injusto dizer que todos os autores difíceis escreveram para não serem entendidos. Existem, de facto, obras de tal profundidade, riqueza e complexidade que se tornam fontes de inesgotáveis e criativas interpretações. Despertam sempre para novos horizontes e para dimensões ocultadas ou descuidadas da existência humana. São mil vezes preferíveis aos produtos do contrabando da publicidade de êxito fácil, que rapidamente se esgotam na sua brilhante superficialidade. Isto para não falar da abundante literatura de espiritualidade, à qual falta sobretudo Espírito Criador.
Hans Küng não pertence a nenhum desses mundos. Miguel Esteves Cardoso, num pequeno texto, bem-humorado, O milagre de Küng [1], tocou no essencial: “Na verdade, a obra de Küng presta-se a simplificações. A razão é só uma: porque ele próprio fez por isso, fartando-se de trabalhar para atingir uma simplicidade cintilante. (…) Não são livros pequenos, porque não podem ser. Mas têm uma virtude que se pode dizer mais do que divina, porque o próprio Deus não a tem: clareza.”
Realizou-se como verdadeiro e apaixonado teólogo católico. Todas as questões teológicas do cristão têm uma história que ele deve procurar conhecer com o rigor possível, recorrendo às melhores fontes e à bibliografia mais problematizante. Essa exigência é activada pelas interrogações mais profundas da actualidade social e cultural do mundo em que vive e trabalha.
Essa é, aliás, uma exigência consubstancial à condição mais antiga da teologia. Já a Primeira Carta de S. Pedro recomendava: Estai sempre prontos a dar razão da esperança a todo aquele que vos interpela. Fazei-o, porém, com mansidão e respeito [2].
Ninguém, seja em que época for, conhece a sabedoria de Deus manifestada como mistério, na insondável humanidade do Nazareno aberta a todos os modos do humano, sem se esgotar em nenhum, para vencer a nossa desumanidade. As razões da esperança cristã foram manifestadas, nos textos do Novo Testamento, de modo muito plural. Muitos foram os mundos e os modos de viver e testemunhar as múltiplas experiências do Espírito de Cristo, no que estas tinham de mais perene e provisório. Revelou-se como Espírito da liberdade, sempre ameaçada, como o próprio S. Paulo testemunhou.

2. Hans Küng não pertence à primeira geração do século XX que sofreu com o autoritarismo romano. Basta pensar em exegetas e teólogos como Marie-Joseph Lagrange, Marie-Dominique Chenu, Yves Congar, para falar, apenas, dos que conheço melhor. Estes, porém, são anteriores ao Vaticano II. Esperava-se que tivesse chegado, com João XXIII e o Concílio, uma era de liberdade. De facto, tudo começou a complicar-se com a encíclica de Paulo VI, Humanæ Vitæ. Depois, a liberdade, no âmbito das instituições da Igreja, passou várias décadas de inverno pesado que encobriu as situações mais vergonhosas.
Ao tentar calar Hans Küng, o Vaticano perdeu a voz que o tentava alertar para aquilo que era urgente corrigir: em 1979, foi-lhe revogada a licença de, oficialmente, ensinar teologia católica, nas instituições que requerem o reconhecimento do Vaticano. Essa medida, algo ridícula, manifestou-se inútil.
Hans Küng considerava a Universidade de Tubinga o melhor lugar para fazer teologia. Esta Universidade criou as condições institucionais para que ele pudesse alargar o âmbito da sua prática teológica, com o Instituto de Pesquisas Ecuménicas, como unidade autónoma em relação à Faculdade de Teologia Católica. De facto, tornou-se um teólogo ainda mais católico, mais universal.
Quem perdeu não foi Hans Küng. Foi a Instituição Católica que perdeu uma voz que a inquietava, voz que a poderia salvar das humilhações públicas, divulgadas por todos os meios de comunicação e que tanto contribuíram para o seu descrédito.
Na Introdução à sua obra de 2011 – A igreja tem salvação? – manifesta a sua paixão pela vida da Igreja Católica que o obriga a novo grito documentado: “Eu preferiria não ter escrito este livro. Não é nem um pouco agradável ter de submeter a minha amada Igreja a uma crítica tão contundente. E uma crítica, aqui, em forma de publicação. Com ‘minha amada Igreja’ refiro-me à Igreja Católica – a maior, a mais poderosa, a mais internacional, em certo sentido também a mais antiga, cuja história e destino permearam os de todas as outras Igrejas. Certamente eu preferiria dedicar o meu tempo a outras questões e projectos importantes que urgem e estão presentes na minha agenda. Mas o curso da restauração, tal como se deu nas últimas três décadas, sob o comando dos papas Karol Wojtyla e Joseph Ratzinger, com os seus efeitos cruciais, cada vez mais dramáticos para o ecumenismo cristão, obriga-me a de novo assumir o papel, que tanto me desagrada, de crítico do papa e de reformador da Igreja, numa ocupação que não raras vezes tem suplantado aspectos das minhas obras teológicas, que me seriam mais importantes.
“Na actual conjuntura já não é possível calar de maneira responsável: há décadas, tenho feito observar a grande crise que a Igreja Católica atravessa – na verdade, uma crise de direcção, com os seus desdobramentos –, a produzir resultados diversos em diferentes esferas, além de consequências razoáveis para a hierarquia católica” [3].
Não é preciso ser adivinho nem gozar de informações secretas para notar a importância desta e de outras obras de Hans Küng, nas opções reformistas do Papa Francisco com quem, aliás, se correspondeu!

3. Estas questões de circunstância impediram-me de dizer o que penso da importância do estilo teológico de Hans Küng, manifestado numa obra imensa de vários géneros, mas sempre ao serviço de uma teologia, cada vez mais católica, mais ecuménica e mais inter-religiosa, pelo seu conteúdo e pelo seu método. Não era um teólogo de gabinete e não escrevia para ele nem para os seus pares. As suas obras mais volumosas e complexas acabavam sempre por gerar versões para o grande público. Aconteceu, por exemplo, com a sua obra inovadora sobre a Igreja, sobre Ser Cristão, sobre Deus existe?
Onde, porém, manifestou as dimensões e a profundidade do seu pensamento teológico e do seu método foi na resposta à pergunta: Com toda a sinceridade, Sr. Küng, em que crê pessoalmente? A resposta foi dada em nove aulas, em Tubinga (2009), seguidas por quase mil ouvintes. Resultou daí uma obra, de pouco mais de 300 páginas, sobre Aquilo em que creio [4]. É um itinerário provocador. Não o posso deixar apenas nesta anotação.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO


[1] Cf. PÚBLICO, 08.04.2021. Ver também 7Margens: A. Marujo (07.04.2021) e Joel Lourenço Pinto (11.04.2021)
[2] 1P 3, 13-17
[3] Cf. Hans Küng, A igreja tem salvação?, Paulus Brasil, 2012. A Introdução é de 01.02.2010
[4] Hans Küng, Aquilo em que creio, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2014. A Temas e Debates também publicou a trilogia: Judaísmo, Cristianismo, Islão

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