Reflexão de Georgino Rocha
para o Domingo de Páscoa
O Ressuscitado não pode desligar-se do Crucificado e da “causa” que propôs na Palestina e pela qual foi condenado
A manhã da Páscoa contrasta profundamente com as trevas que se abatem sobre a terra, aquando da morte do Nazareno. Com as trevas, vem o recolhimento, o silêncio profundo. Com a aurora da manhã, surgem a correria, a agitação, a comunicação e outros dinamismos de vida em efervescência. Protagonizam este processo Maria Madalena, o discípulo que Jesus amava e Pedro. A este primeiro círculo, outros cada vez mais amplos se sucedem. Todos assumem atitudes que se tornam paradigmas do itinerário da fé cristã contagiante: trazer ao coração a memória do sucedido, abrir-se à surpresa da ocorrência, ir em busca de sinais credíveis, examinar os vestígios, deixar-se iluminar pela Escritura, reconhecer a novidade do acontecimento, partilhar com outros a energia transformante e o sentido transcendente que comporta, fazer comunidade. Jo 20, 1-9.
“É inútil procura-lo agora no lugar dos mortos”, afirma um catequista a propósito de Jesus ressuscitado. Quando a comunidade, no dia do Senhor, se reúne para ouvir a palavra e para partir o pão, ali está presente, ali pode ser ouvido e visto com olhos de fé.
A liturgia da Missa, após a 2ª leitura, integra a Sequência Pascal, poema em diálogo: “Diz-nos, Maria: Que vistes no caminho? Vi o sepulcro de Cristo vivo, e a glória do ressuscitado. Vi as testemunhas dos Anjos, vi o sudário e a mortalha. Ressuscitou Cristo, minha esperança: precederá os discípulos na Galileia. Sabemos e acreditamos: Cristo ressuscitou dos mortos: Ó Rei vitorioso, tende piedade de nós”.
O Crucificado ressuscitou. Agora é visto em surpreendentes e sucessivas aparições. Dá provas fidedignas da vida nova e pujante que o habita e anima. Preenche, plenamente, o vazio existencial originado pelo seu desaparecimento. Congrega os fugitivos que se haviam dispersado. Entrega-lhes, de novo, os seus dons. Envia-os em missão. Responsabiliza-os por fazerem o alegre anúncio da sua ressurreição que confirma a seriedade do projecto “desenhado” em acções e explicitado em palavras durante a sua vida terrena.
O anúncio provoca reacções imediatas. Os guardas são convidados a adulterarem o que presumivelmente teriam visto e recebem promessas de pagamento. Pedro e o grupo apostólico são acusados de estarem embebedados na manhã de Pentecostes. Pedro e João são presos e julgados por anunciarem que o conluio religioso-político havia matado “o Autor da vida, mas Deus ressuscitou-o dos mortos” (Act. 3, 15). E os exemplos continuam na história da Igreja iniciada no livro dos Actos dos Apóstolos e prolongada pelos tempos fora.
O Ressuscitado não pode desligar-se do Crucificado e da “causa” que propôs na Palestina e pela qual foi condenado. É esta mensagem, selada com sangue de cruz que incomoda os instalados, inquieta os satisfeitos, questiona os detentores do poder económico ou outro, deixa a claro a indecência dos mecanismos perversos, sociais e religiosos, que segregam e marginalizam, abre horizontes de Infinito condizentes com as aspirações mais genuínas do coração humano, facilita a realização progressiva do “velho” sonho do homem ser como Deus.
Um Crucificado que é ressuscitado constitui o penhor definitivo de que o caminho percorrido, a mensagem anunciada e a doação feita dignificam a vida e têm valor de eternidade. Só Ele marca, verdadeiramente, o ritmo da história injectando energias novas de transformação e abrindo para sempre as “portas” do futuro que germina no presente em gestos de doação generosa.
Durrwell, missionário redentorista, aprofundou o mistério da Páscoa do Filho como poucos. Antes de morrer aos 93 anos, escreveu a homilia para o seu funeral. Eloquente. Confiante. Entusiasta. Eis alguns parágrafos.
"Chegou a minha hora, e eu não digo senão com S. Paulo: Desejo partir e viver com Cristo (Flp 1, 21). Sei que esse momento será o de maior Graça da minha vida! Eis que chegou a Hora de pôr-me a Caminho e de entrar pela Porta aberta. Jesus estará lá, “Caminho Vivo” (Hb 10, 20) e Porta Aberta, “Cristo nossa Páscoa” (1Cor 5, 7), Jesus o meu “passador”. Atrair-me-á a si e me incorporará ao seu próprio “morrer para o Pai”. A minha morte já foi ensaiada na sua! Por isso, eu só me quero entregar a ele. Porque este Jesus a quem me juntarei na minha morte, ele mesmo foi na sua morte que foi ressuscitado. Eu morrerei na sua morte. Jesus me unirá a si e morreremos a dois para o Pai. Suprema comunhão pascal”. Rui Santiago, CSRR Grito Rural, nº 393. Acção Católica.