Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
O modo como é entendida e vivida a Páscoa cristã depende de cada um e das Igrejas em que se reconhecem.
1. Entramos na Semana Santa ou, como já foi usual dizer, na Semana Maior. Os acontecimentos que estão na origem das várias correntes e expressões do movimento cristão dividiram o tempo: antes e depois de Cristo, a partir do seu nascimento. Esta era cronológica (Era Cristã ou Era Comum) é globalmente adoptada, mesmo em países de cultura maioritariamente não cristã, para efeitos de unanimidade de critérios em vários âmbitos, como o científico e o comercial. Nem todos os países seguem o calendário ocidental. Contudo, tornou-se o padrão internacional, sendo reconhecido por instituições como a ONU ou a União Postal Universal, por razões conhecidas.
O modo como é entendida e vivida a Páscoa cristã depende de cada um e das Igrejas em que se reconhecem. Na Europa, já não estamos em regime de Cristandade. A separação entre Igrejas e Estado está felizmente consumada em muitos países, mas a ignorância das próprias tradições religiosas parece-me, culturalmente, lamentável.
As pessoas da minha idade já conheceram várias formas de entender e viver o Tempo Pascal. Em certas zonas do país, procura-se reconstituir, por devoção e louváveis razões culturais, ecos da Semana Santa como a viviam os nossos avós.
Entretanto, Portugal vai mudando. De ano para ano, por causa da desertificação do interior rural e da alteração cultural e religiosa do país, a Semana Santa tem significações muito diferentes conforme as comunidades humanas. Os calendários religiosos reflectem a diversidade religiosa [1].
Escrevo a partir do interior da Igreja Católica que tem um pormenorizado ritual das celebrações pascais. A configuração que essas celebrações assumem – segundo as paróquias, os movimentos e as congregações religiosas – pode ser muito diferente. Para quem dispõe de meios de deslocação, tem a possibilidade de fazer algumas escolhas, embora os textos litúrgicos sejam, fundamentalmente, semelhantes, fruto de selecções bíblicas.
O modo como está distribuída a encenação da Semana Santa supõe que Jesus tinha manifestado ruidosamente a sua oposição ao sistema económico, social, político e religioso, organizado em torno do Templo de Jerusalém. Esse sistema teocrático era, para Ele, um engano escandaloso, pois não passava de uma sacralização de negócios.
2. O Domingo de Ramos, segundo os quatro Evangelhos, evoca um acontecimento paradoxal que se vai radicalizar no tríduo pascal: a recusa do messianismo político e do reinado político de Deus, a recusa da teocracia.
No Domingo de Ramos, a resposta de Jesus à manifestação popular, que o evocava como incarnando “o reino do nosso pai David", parece ridícula: um rei não se apresenta montado num jumentinho. Tem de mostrar grandeza na trepidação dos cavalos do exército. Um rei de jumentinho está a mostrar que o seu reinado é de outra ordem, de ordem desconhecida, muito humilde.
Tudo isto vai ser explicitado num eloquente diálogo de surdos, encenado por S. João, que importa ler devagar e meditar na revolução religiosa e política que encerra. Continua ainda hoje inquietante, indicando que o mundo todo precisa de uma grande Páscoa, de morrer ao império do eu, renascendo para um mundo de irmãos.
Retenhamos este fragmento da longa narrativa da Paixão: quando Jesus foi preso e levado a tribunal pelas autoridades judaicas, que o entregaram ao poder romano, Pilatos quis saber qual era a acusação. Depois de várias movimentações, perguntou a Jesus: Tu és rei dos judeus? Respondeu-lhe Jesus: Tu perguntas isso por ti mesmo ou porque outros to disseram de mim? Pilatos replicou: Serei eu, porventura, judeu? A tua gente e os sumos sacerdotes é que te entregaram a mim! Que fizeste? Jesus respondeu: o meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas teriam lutado para que Eu não fosse entregue aos judeus. Agora, o meu reino não é daqui. Disse-lhe Pilatos: Então, Tu és rei? Respondeu-lhe Jesus: tu dizes que sou rei. Para isto nasci, para isto vim ao mundo, para dar testemunho da Verdade. Todo aquele, cujo ser é da Verdade, ouve a minha voz. Diz-lhe Pilatos: o que é a verdade? E, tendo dito isto, de novo saiu ao encontro dos judeus e diz-lhes: eu não encontro qualquer culpa nele [2].
Hoje, fala-se muito, pratica-se pouco, da chamada política de transparência, mas até as manobras da transparência podem ocultar a verdade.
3. Como vimos, S. João marcou a recusa messiânica do poder político em nome de Deus. Para o filósofo Jean-Luc Nancy, existe actualmente uma epidemia teocrática para atacar a democracia [3]. A cartografia deste procedimento começa na Índia, “obviamente”, prossegue no Japão onde o ex-primeiro-ministro Shinzo Abe tinha multiplicado os sinais de entrelaçamento do Estado com o xintoísmo, mesmo tendencialmente de um retorno à divindade anterior do imperador. A seguir, vem a Turquia, onde se verificou a reapropriação muçulmana de Hagia Sophia (Santa Sofia) em Istambul, símbolo de toda uma política. A lista inclui ainda a Birmânia, onde a resistência do Estado ao budismo nacionalista e violento não impede a progressão desta corrente, à qual o novo governo é mais favorável do que o anterior (que não evitou a perseguição aos muçulmanos).
Jean-Luc Nancy nota que fenómenos semelhantes estão a surgir na Tailândia e no Camboja, onde o budismo theravada já é a religião oficial. Também a recente lei israelita do “Estado judeu”, as relações do Estado russo com a religião ortodoxa e do Estado húngaro com a Igreja Católica inscrevem-se nesta tendência. O mapa da “epidemia teocrática” regista a ascensão política dos evangelistas nos Estados Unidos ou no Brasil – incentivada e elogiada por Trump e Bolsonaro. O filósofo conclui com uma referência às agitações fundamentalistas cada vez mais barulhentas, por parte, por exemplo, dos católicos franceses.
A instrumentalização religiosa é um abuso. Para o citado filósofo, uma religião digna desse nome não consiste num esforço para reactivar um passado, mas num fervor novo, criativo. O que, todavia, se verifica é que a avidez religiosa dos manipuladores políticos (e mercantis) pretendem reactivar passados distorcidos e truncados, submetidos às necessidades da causa. A teocracia, que mais ou menos assombra a epidemia actual – e sempre em oposição à democracia –, não é necessariamente o espírito das religiões invocadas.
A democracia ainda não é o regime das estruturas do poder, na Igreja Católica. O Papa Francisco sonha e luta pela morte dos poderes de opressão e pela ressurreição de um mundo de irmãos. Páscoa da Igreja e Páscoa do Mundo!
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Alfredo Teixeira (org.), Identidades Religiosas em Portugal, Paulinas, 2012
[2] Cf. Jo 18, 28-38; ver também Jo 12, 20-36
[3] Cf. 7Margens, Eduardo Jorge Madureira, Jean-Luc Nancy contra a manipulação religiosa do poder, 15.03.2021. Não reproduzi na íntegra