no PÚBLICO
A prática da fraternidade religiosa deve estar ao serviço da fraternidade universal, em colaboração com todas as pessoas e movimentos, sem descriminações
1. A viagem do Papa ao Iraque já foi muito comentada. Parece-me, no entanto, que não foi destacado o seu contributo para robustecer a alteração profunda que está a acontecer, na história e no relançamento do diálogo inter-religioso, com incidência dirceta nas práticas sociais.
Não basta denunciar a cobertura falsamente religiosa dos discursos do ódio e da violência e proclamar o diálogo como caminho para abordar as dificuldades nas relações entre seres humanos.
No primeiro momento de qualquer diálogo, o mais importante é a escuta do outro na sua irredutível alteridade e nas suas imprevisíveis manifestações. No chamado diálogo inter-religioso, como é praticado nas mesas-redondas dos meios de comunicação e noutros espaços, em geral não se vai muito além de uma escuta inconsequente, pois não parece destinado a alterar o presente e o futuro dos intervenientes. Apresenta-se, por vezes, como uma passagem de modelos religiosos: os representantes de cada religião em foco passam a fazer a apologia da sua própria religião, procurando desfazer as acusações que habitualmente lhe são feitas, fruto de ignorâncias e preconceitos persistentes.
É uma fase necessária, mas muito insuficiente, porque lhe falta a análise crítica da situação actual e as propostas de reforma para o futuro.
O que, no entanto, está a acontecer, ao nível das grandes lideranças religiosas, anuncia o despontar de algo que julgo muito novo.
Grão Imame de Al-Azhar e o Papa Francisco |
No encontro em Abu Dhabi (04.02.2021), entre o Papa Francisco e o Grão Imame de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, assumiram adoptar a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento mútuo como método e critério: “Nós – crentes em Deus, no encontro final com Ele e no Seu Julgamento –, a partir da nossa responsabilidade religiosa e moral e através deste Documento, rogamos a nós mesmos e aos líderes do mundo inteiro, aos artífices da política internacional e da economia mundial, para se comprometerem seriamente na difusão da tolerância, da convivência e da paz; para intervir, o mais breve possível, a fim de se impedir o derramamento de sangue inocente e acabar com as guerras, os conflitos, a degradação ambiental e o declínio cultural e moral que o mundo vive actualmente.”
Deste diálogo e do documento que assinaram, longamente trabalhados, resultou uma missão, um programa de acção. Os intervenientes descobriram que é possível substituir o comportamento de mútua rivalidade por intervenções comuns em função da paz, a nível local e global, pois, não haverá paz entre as nações sem a paz entre as religiões (H. Küng). Existe, agora, um compromisso mútuo que terá de ser periodicamente avaliado, com a pergunta: que fizemos com a solene declaração que assinamos?
2. Na peregrinação ao Iraque, além de outros objectivos, o encontro, em Najaf, entre o Papa e o Ayatollah, Al-Sistani, principal líder religioso xiita, foi mais do que um encontro de cortesia. A declaração do gabinete de Al-Sistani referiu que o grande Ayatollah defende concretamente a paz e segurança para os cristãos no Iraque, em pleno cumprimento dos seus direitos constitucionais. Evocou também os incidentes dos últimos anos, especialmente durante o período no qual terroristas tomaram vastas áreas em várias províncias iraquianas, praticando terríveis actos criminosos. O comunicado realça ainda que os dois responsáveis debateram as situações persistentes de injustiça, opressão, pobreza, perseguição religiosa e ideológica. O grande Ayatollah destacou o papel que os grandes líderes religiosos e espirituais devem desempenhar na contenção dessas tragédias.
Não são, apenas, belas palavras sem consequências: assumem um compromisso que deve englobar também as desgraças que o autoproclamado “Estado Islâmico” difunde em muitas zonas de África.
No encontro inter-religioso em Ur, terra natal de Abraão, segundo a tradição bíblica, o Papa Francisco lembrou, aos seguidores das diferentes religiões monoteístas, que não se devem considerar apenas todos irmãos e descendentes do mesmo patriarca. A prática da fraternidade religiosa deve estar ao serviço da fraternidade universal, em colaboração com todas as pessoas e movimentos, sem descriminações.
Com esta nota, pretendo chamar a atenção para o novo passo no diálogo inter-religioso consequente: a condição humana é comum a crentes e a não crentes. Como destaquei na crónica anterior, o Papa Francisco mostrou que a religião autêntica não é uma alienação: “Erguemos os olhos ao Céu para nos elevarmos das torpezas da vaidade; servimos a Deus, para sair da escravidão do próprio eu, porque Deus nos impele a amar. Esta é a verdadeira religiosidade: adorar a Deus e amar o próximo. No mundo actual, que muitas vezes se esquece do Altíssimo ou oferece uma imagem distorcida d’Ele, os crentes são chamados a testemunhar a sua bondade, mostrar a sua paternidade através da nossa fraternidade.”
3. O Papa Francisco tem nomeado, muito a conta-gotas, algumas mulheres para cargos de algum relevo no Vaticano. Não é muito, mas já é alguma coisa.
O que me deu especial alegria foi a carta de María Lía Zervino, presidente da União Mundial de Organizações Femininas Católicas, dirigida directamente ao Papa Bergoglio:
“… Recordo que o ano passado nos recomendaste pessoalmente para sermos corajosos como Maria Madalena, mesmo quando nos dirigimos ao Papa. Por isso, permito-me dizer-te, com todo o respeito, confiança e afecto, que, como mulher, sinto que algo nos é devido. Lutas contra o machismo e o clericalismo, mas penso que não se fez o suficiente para aproveitar a riqueza das mulheres que constituem grande parte do povo de Deus.
“… Sonho uma Igreja que tenha mulheres idóneas como juízes em todos os tribunais em que se tratam as causas matrimoniais, nas equipas de formação de cada seminário e para o exercício de ministérios como a escuta, a direcção espiritual, o cuidado da saúde pastoral, o cuidado pelo planeta, a defesa dos direitos humanos, etc. Para os quais, pela nossa natureza, as mulheres estão preparadas igualmente ou por vezes melhor do que os homens. Não só as mulheres consagradas, mas todas as mulheres leigas que, em cada região do mundo, estão prontas a servir!
“Sonho que, durante o teu pontificado, inaugures, juntamente ao sínodo dos bispos, um sínodo diferente: o sínodo do povo de Deus, com uma representação proporcional do clero, dos consagrados e das consagradas, dos leigos e das leigas. Não seremos mais felizes só porque uma mulher vota pela primeira vez, mas porque muitas mulheres leigas preparadas, em comunhão com todos os outros membros desse sínodo, possam dar o seu contributo e o seu voto, que se juntará às conclusões que serão colocadas nas tuas mãos.”
Para María Lía Zervino não se trata de uma reivindicação, pois, na sua perspectiva, as mulheres não pretendem ocupar lugares como vasos de flores, nesta moda de nomear mulheres, nem subir a posições de poder. Pretendem servir.
Entretanto, outras alegrias e ambiguidades aconteceram. É assunto para outras crónicas.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO