no PÚBLICO
1. Quando comecei a ler os textos da liturgia deste Domingo, consagrado à alegria, fiquei triste. São textos muito antigos acerca de acontecimentos ainda mais antigos, de mundos que apenas se renovam em guerras fratricidas, com deuses que só se mostram relevantes a justificar a violência. Não parecem os mais adequados para despertar, hoje, nas comunidades das celebrações dominicais, online, motivações e formas para enfrentar a fadiga, a tristeza e a depressão. Pensei: algo como o quarto andamento da Nona Sinfonia de Beethoven seria bem-vindo!
É, no entanto, pressuposto que tais motivações estão inscritas nesses veneráveis documentos da memória religiosa. Seria tarefa das homilias fazer a ponte entre eles e as questões da nossa vida presente: a Bíblia, em acto de interpretação, numa mão e o jornal na outra, como recomendava Karl Barth.
Mesmo quando isto acontece, o resultado nem sempre é entusiasmante. Há muito tempo que se diz que as homilias ajudam mais ao aborrecimento do que à festa.
Nos anos 60 do século passado, defendi – num longo texto académico baseado em Tomás de Aquino, dominicano, e em Odo Casel, beneditino – que a intervenção histórica de Jesus Cristo, participante da eterna juventude do seu Deus, não ficava, como se diz na Missa, “naquele tempo”, colada a um remoto passado. A sua eficácia libertadora atinge presencialmente todos os tempos e lugares. Cristo é nosso contemporâneo. Acorda sempre mais cedo do que nós e nem espera pelas nossas celebrações litúrgicas. Está presente e actuante em toda a nossa vida se consentirmos nessa humana e divina provocação[1].
O consentimento é essencial. Não estamos no reino dos automatismos mecânicos. A liturgia sacramental, como o próprio nome sugere e invoca, acontece na linguagem simbólica de todo o corpo humano vivo, pessoal e comunitário. Não actua sem nós, sem a nossa colaboração e a da comunidade de esperança. A poesia, a música de grande qualidade, a beleza dos gestos devem falar a infinita bondade contagiante de Deus vivo, na transformação das relações entre irmãos.
Enquanto celebração comunitária, precisa de um programa – um ritual – no qual todas as pessoas se possam reconhecer enquanto concelebrantes e não como assistentes. “Assistir à missa” não é concelebrar com palavras e gestos criadores de laços fraternos, visíveis e invisíveis, com toda a humanidade a que Cristo se oferece como pão e vinho, vida dada para alimentar a alegria e ajudar a esperança.
Deixo, aqui, uma breve referência às leituras da Missa, para ler na íntegra, meditar e escrever ou cantar segundo a ressonância que nos provocarem. Essas leituras abrem com esta antífona: Alegra-te, Jerusalém; rejubilai todos os seus amigos. Exultai de alegria todos vós que participastes no seu luto e podereis beber e saciar-vos na abundância das suas consolações.
A primeira leitura, tirada do 2.º Livro das Crónicas, narra o regresso do exílio por iniciativa de Ciro, rei dos persas, que lhes abre o caminho de regresso a Jerusalém, seguida de um poema muito belo, Salmo 136: sobre os rios da Babilónia nos sentamos a chorar…
A segunda leitura, da Carta aos Efésios, assegura-nos que já estamos no céu de Deus, no céu da sua pura misericórdia, não por mérito nosso, mas por iniciativa do seu infinito amor. O Evangelho é de S. João. Jesus diz a Nicodemos, seu discípulo clandestino: Deus não enviou o seu filho ao mundo para condenar o mundo[2]. A especialidade de Deus, tantas vezes contrariada pelas religiões e pelas igrejas pouco cristãs, não é a de condenar, mas a de salvar o que parecia irremediavelmente perdido!
2. Agora, tenho de confessar que, nos últimos dias, passei do desconsolo para momentos de extraordinária alegria. Primeiro, foi a notícia de que o Papa Francisco foi passar duas horas com Edith Bruck, uma judia sobrevivente do holocausto, a maior tragédia do século XX. Depois, foi a peregrinação do Papa Francisco ao Iraque. Veio testemunhar que é possível alterar, em diálogo lúcido e afectivo, o comportamento dos próprios líderes das religiões.
No caso católico, não posso esquecer o testemunho que espantou a empregada de Hannah Arendt, quando morreu João XXIII: “Senhora, esse papa era um verdadeiro cristão. Como foi possível? E como pôde acontecer que um verdadeiro cristão se sentasse no trono de S. Pedro? Ele não teve que ser primeiro nomeado bispo, arcebispo e cardeal, antes de ser, finalmente, eleito papa? Ninguém se deu conta de quem ele realmente era?”[3].
Também eu me comovia, até às lágrimas, nas audiências abertas deste Papa, onde toda a gente se julgava da sua família. Espantei-me com a sua determinação, como se fosse a coisa mais normal do mundo, ao referir-se, de forma humorada, à convocatória do Concílio Vaticano II, o maior acontecimento religioso do Século XX e que ainda não foi verdadeiramente interiorizado em vários sectores da Igreja.
3. A visita do Papa Francisco ao Iraque é um acontecimento de alcance mundial, que vai levar muito tempo a ser digerido pela chamada herança de Abraão: judeus, cristãos e muçulmanos. Com um dos grandes líderes do Islão sunita, já tinha assinado um célebre documento conjunto. Agora, com o grande líder do Islão xiita teve um encontro memorável. Também vai levar algum tempo a ser compreendida por quem julga que Deus e as religiões deixaram de ser relevantes.
Com as iniciativas inclusivas dos diálogos inter-religiosos, não estarão em curso reformas inesperadas, nas chamadas religiões monoteístas, reconduzidas ao que têm de mais essencial?
No Encontro inter-religioso, na planície de Ur, o Papa Francisco apontou para o ponto fulcral: “Nós, descendência de Abraão e representantes de várias religiões, sentimos que a nossa função primeira é esta: ajudar os nossos irmãos e irmãs a elevarem o olhar e a oração para o Céu. E disto todos precisamos, porque não nos bastamos a nós próprios. O ser humano não é omnipotente; sozinho, não é capaz. E se escorraça Deus, acaba por adorar as coisas terrenas. Mas os bens do mundo, que fazem muitos esquecer-se de Deus e dos outros, não são o motivo da nossa viagem sobre a terra. Erguemos os olhos ao Céu para nos elevarmos das torpezas da vaidade; servimos a Deus, para sair da escravidão do próprio eu, porque Deus nos impele a amar. Esta é a verdadeira religiosidade: adorar a Deus e amar o próximo. No mundo actual, que muitas vezes se esquece do Altíssimo ou oferece uma imagem distorcida d’Ele, os crentes são chamados a testemunhar a sua bondade, mostrar a sua paternidade através da nossa fraternidade”.
Para que a alegria desta peregrinação não esmoreça, há muito que fazer. Voltaremos ao assunto.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
14. Março. 2021
[1] Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, 3 q.48 a.3; q.56 a.1; Odo Casel, OSB, O Mistério do Culto Cristão, SNL, 2019
[2] Há várias traduções do texto grego: as que figuravam nas Bíblias de uso mais corrente, a tradução de Frederico Lourenço, a nova tradução proposta pela Conferência Episcopal Portuguesa (ad experimentum) e as observações de Dimas de Almeida a esta nova tradução e a sua proposta. Todas elas oferecem inconvenientes em português inteligível.
[3] Cf. A verdadeira força de João XXIII. Artigo de Hannah Arendt, in Revista IHU Online, Edição 546