Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
Quero deixar, aqui, o testemunho de uma grande obra literária, na qual a religião é a própria cura de quem a pratica.
1. Carlos Drummond de Andrade, no grande poema-crónica Prece do brasileiro, por ocasião da Taça do Mundo (1970), termina: “Nem sei como feche a minha crónica.” Eu, pelo contrário, não sei como abrir a minha. Não por falta de assunto, mas por excesso de motivações religiosas contraditórias.
Chegam-me, continuamente, pedidos para rezar por doentes em situações extremas e pelas famílias que não puderam acompanhar os últimos momentos das pessoas que mais amavam, por causa da covid-19.
Recebi também alguns telefonemas, culpando a religião e a Igreja pelas cedências do Presidente da República, dos deputados e do Governo ao sentimentalismo piegas do Natal. Cedências responsáveis por muitas mortes e o completo descontrole no combate à difusão da pandemia.
Esta conversa, embora muito repetida, parece-me bastante descontrolada.
Para certas correntes culturais, as religiões foram, são e serão sempre, em toda a parte, fontes e sistemas de alienação da responsabilidade humana. Não vale a pena reconhecer o bem fundado de muitas das acusações e das suspeitas desenvolvidas, no longo processo contra as religiões; nem adianta mostrar que esse processo talvez esteja mal desenhado, semeado de confusões e de esquecimentos essenciais à condição humana.
Não creio que seja o impulso humano de transcendência o grande responsável por estarmos tão longe de um mundo sem pobreza, sem desigualdades gritantes, sem doenças, sem mortes. Pelo contrário. São as pessoas, que fizeram e fazem da sua existência uma vida-dada, que constituem um exemplo e uma fonte de esperança. Não são utopias, são evidências perante os nossos olhos.
Conheci e conheço muitas pessoas santas que não estão nem serão canonizadas. Mostram que existem formas de religião que robustecem a inteligência e a vontade de servir, de cuidar, sobretudo de quem mais precisa.
2. Para sair de impressões subjectivas, quero deixar, aqui, o testemunho de uma grande obra literária, na qual a religião é a própria cura de quem a pratica.
Foi em Toulouse, em 1961, que li, pela primeira vez, Grande Sertão: Veredas. Essa edição foi oferta do meu confrade brasileiro, Fr. Mateus Rocha. Nunca me despedi desta obra-prima. O primeiro contacto não é fácil, mas, quando se entra naquele mundo, é difícil abandoná-lo. Continua comigo.
Aqui ficam alguns fragmentos dessa religião sertaneja, feita de muitas peças, mas, como é evidente, sem poder reproduzir o contexto narrativo desses fragmentos [1].
Riobaldo Rosa é o seu grande teólogo narrador. Tem consciência de que “viver é muito perigoso” e que a vida da gente nunca tem termo real. Procura decifrar as coisas que são importantes: “Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder.”
O que predomina na fala de Riobaldo é o sertão forma de vida, um jeito de ver as coisas e de se comportar: “O sertão é o dentro da gente.”
Diz Riobaldo: “O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso, é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral, isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião seu moço! Uma só, para mim, é pouca. Talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me aquieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório.”
Isto pode parecer relativismo religioso. Julgo que é, apenas, o encontro com o Essencial, nas muitas e variadas mediações do divino.
Para ele, o ser humano não está pré-determinado: “O senhor… Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam: Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo é às brutas, mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! Deus é paciência. Deus que roda tudo. Deus vem, guia a gente por uma légua, depois, larga. Então, tudo resta pior que que era antes. Esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém pode medir suas perdas e colheitas. É preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente com a sua dele nenhuma existência.”
Neste grande romance, não se discute, de forma abstracta, se Deus existe ou não existe. É uma evidência tumultuosa: “Que Deus existe, sim, devagarinho, depressa. Ele existe – mas quase só por intermédio da ação das pessoas: dos bons e maus. Coisas imensas no mundo. O grande-sertão é a forte arma. Deus é um gatilho? Então, onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade? Deus é urgente, sem pressa. O sertão é dele.”
3. Surge depois um longo arrazoado. Resume essas reflexões que vão pontuando a história dos acontecimentos e dos comportamentos das pessoas com interrogações que se desdobram sempre em novas interrogações: “Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há de a gente perdidos no vaivém e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim, dá certo. Mas se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa, encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não doi até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não doi sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não de morte mas de ver nascimento. Medo do mistério. O senhor não vê? O que não é Deus é estado do demónio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demónio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que não existe é que ele toma conta de tudo. Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza.”
Volta, depois, à importância ontológica e purificadora da religião: “O existir da alma é a reza… quando estou rezando, estou fora de sujidade, à parte de toda a loucura. Ou o acordar da alma é que é?”
“Somente, não ache que religião afraca. Senhor, ache o contrário. E dar tudo a Deus, que de repente vem, com novas coisas mais altas, e paga e repaga, os juros dele não obedecem medida nenhuma. Deus é alegria e coragem – que Ele é bondade adiante, quer dizer.”
Nesta religião, o Amor vem sempre acompanhado de justiça. É ele que faz madrugar e amanhecer.
Neste universo, não há conflito entre a afirmação religiosa e a afirmação humana. Não são rivais, fortalecem-se mutuamente. É o testemunho desta grande e difícil obra da literatura brasileira.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas