domingo, 17 de janeiro de 2021

Vem Espírito Santo Criador!

Crónida de Bento Domingues no PÚBLICO


Bergoglio tem-se esforçado por realçar que o lugar das mulheres na Igreja está muito desfasado em relação ao papel que desempenham na vida social, cultural, económica e política em muitos países. Homens e mulheres gozam cada vez mais, ainda com muitas distorções, dos mesmos direitos e deveres cívicos.

1. Quando se pretende desqualificar as intervenções e os escritos do Papa Francisco, diz-se que lhe falta um pensamento estruturado por grandes princípios de alcance universal. Deixa-se levar pelas urgências da pastoral marcada pelo tempo, pelo lugar, pelas circunstâncias e pela vida e aflições das comunidades.
Parece-me uma observação bastante ridícula. Bergoglio não foi eleito para reitor de uma universidade pontifícia, mas para cuidar, segundo o Espírito e o método do irmão Jesus de Nazaré, das fraternidades cristãs, de modo que estas sejam o fermento de um mundo de irmãos [1].
Para caracterizar a sua tarefa, Jesus usou a palavra pastor porque, na sua cultura, era a que melhor designava aquele que vai à frente e cuida de todos. João XXIII, na Mensagem inaugural ao Vaticano II, observou que importa ter em conta, “medindo tudo nas formas e proporções do magistério de carácter prevalentemente pastoral”. Não opunha Teologia e Pastoral. Ele próprio nomeou alguns dos teólogos mais famosos pela sua abertura ao devir do mundo concreto. Ele não desprezava o contributo dos teólogos, antes pelo contrário. O que não lhe interessava era teólogos descolados do mundo em mudança.
K. Rahner e E. Schillebbekx, no primeiro número da revista Concilium, marcaram o que deve ser a nova orientação da Teologia: a necessidade de uma análise da hodierna experiência da existência humana à luz da revelação. Por toda a parte onde há vestígios da existência humana, essa existência é atingida e chamada pelo Deus vivo da salvação. Assim, a experiência existencial do ser humano, em qualquer parte onde se encontre, é sempre um locus theologicus, um lugar de descobertas para a convicção vital religiosa. O P. Chenu, o teólogo dos sinais dos tempos e dos mais influentes no desenrolar do Vaticano II, caracterizou bem a complementaridade entre teologia e magistério pastoral [2].
O Papa Francisco dirigiu-se, várias vezes, a algumas Faculdades de Teologia e à Comissão Teológica Internacional, para que as suas investigações e práticas cheirassem a “ovelhas”, a “povo”. Não era para diminuir a necessidade de rigor na investigação, mas para que esta não viva descolada do mundo real em contínua mudança.
Repetiu-se que a doutrina social da Igreja não se devia meter com situações concretas, sujeitas à mudança. Para manter as mãos limpas acabava por não ter mãos. A Igreja viria do eterno e caminharia para a eternidade, mas sem dizer por onde passava e com quem caminhava. De facto, o Papa Francisco situa-se num plano muito diferente: o abstrato paralisa-nos, mas focar-nos no concreto abre caminhos de possibilidades. É esta a posição que defende no seu novo livro, Sonhemos Juntos [3]. O 7Margens fez uma pré-publicação do início do primeiro capítulo: “Tem de se ir às periferias se se quer ver o mundo como ele é”. Segue o conhecido método da Acção Católica: ver, julgar e agir.

2. Jesus de Nazaré não deixou nada escrito. Os primeiros escritos cristãos, os de S. Paulo, oferecem a sua experiência do Ressuscitado e as implicações que a sua experiência teve, para mostrar as superações da Lei antiga e a inclusão do mundo todo na graça universal de salvação. Esta deixou de ser o exclusivo do povo de Israel.
Se ficássemos só com os textos de S. Paulo, não sabíamos nada de concreto acerca do itinerário do Nazareno. A construção das narrativas dos quatro Evangelhos permite ter imagens e discursos retrabalhados do seu itinerário: as suas opções, os colaboradores que escolheu, as atitudes, as intervenções e as parábolas que elaborou para vencer o mundo das muitas formas de exclusão. De facto, encontrou-se com a exclusão criada pela religião oficial em que tinha sido formado: cegos, surdos, leprosos, possessos, publicanos e, mais radicalmente, as mulheres. Sobre essas situações concretas, não fez declarações abstractas: viu, julgou e agiu.
Como não foi Ele que escreveu essas narrativas, o que temos são as interpretações dos autores dos quatro Evangelhos e dos Actos dos Apóstolos e das comunidades em que se inscreviam, muitos anos depois do que aconteceu a Jesus. Mas todas as narrativas, ditas canónicas, têm o mesmo assunto e o mesmo propósito, realizados segundo a significação que revestiam para as comunidades em que surgiram. Não falam de um mito, mas de alguém muito humano situado numa época e num mundo que, hoje, pode e é estudado com bastante verosimilhança.
Os escritos tiveram o cuidado de referir tudo a Jesus Cristo e ao seu Espírito criador. Para Ele, o Espírito de Deus não era a sua propriedade privada, mas a sua presença criativa no mundo e na Igreja.
As comunidades, na sua criatividade, nunca prescindiram dessa referência explícita ao Nazareno e ao seu Espírito.
Eram, no entanto, conscientes de que o Espírito de Cristo não se esgotou na criatividade da época apostólica, quer na referência ao número simbólico dos Doze – as 12 tribos de Israel –, como aos 72 discípulos enviados em missão – número simbólico das nações gentias.


3. Uma questão que está sempre em estudo, sem nenhuma conclusão, é o papel das mulheres na Igreja e nos chamados ministérios ordenados como, por exemplo, o da presidência da Eucaristia.
O Papa Francisco acaba de publicar uma Carta Apostólica sob a forma de “Motu Proprio”, Spiritus Domini. É tão breve que se pode chamar um bilhete cheio de ironia. Diz que “Os leigos que tiverem a idade e as aptidões determinadas com decreto pela Conferência Episcopal, podem ser assumidos estavelmente, mediante o rito litúrgico estabelecido, nos ministérios de leitores e de acólitos; no entanto, tal concessão não lhes atribui o direito ao sustento ou à remuneração por parte da Igreja”.
Posso estar muito enganado, mas esta Carta é um exercício magnífico de ironia pastoral. Bergoglio tem-se esforçado por realçar que o lugar das mulheres na Igreja está muito desfasado em relação ao papel que desempenham na vida social, cultural, económica e política em muitos países. Homens e mulheres gozam cada vez mais, ainda com muitas distorções, dos mesmos direitos e deveres cívicos.
No entanto, o Papa Francisco esbarra com a Carta Apostólica de João Paulo II, Ordinatio Sacerdotalis (22.05.1994): “A ordenação sacerdotal, mediante a qual se transmite a função confiada por Cristo aos apóstolos, de ensinar, santificar e reger os fiéis, foi reservada sempre, na Igreja Católica, exclusivamente aos homens.” Esta Carta precisa de uma hermenêutica rigorosa que mostre que ela continua com as imagens de um mundo que está condenado a desaparecer.
Ao publicar um Motu Proprio sobre o que já não precisava de nenhuma publicação, o Papa Francisco manifesta o ridículo da situação actual.
Rezemos: Vem Espírito Santo Criador!

Frei Bento Domingues no PÚBLICO


[1] Hb 2; Mt 23, 8. O Papa Francisco recordou tudo isto na Fratelli Tutti
[2] Cf. Concilium, Janeiro de 1967, 82-91
[3] Sonhemos Juntos. O Caminho para um futuro melhor, edições Planeta

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue