no PÚBLICO
1. Muita gente sente que este longo tempo de pandemia lança uma incerteza corrosiva sobre o nosso quotidiano e sobre o futuro. Os alertas diários contra o desleixo e o pânico são indispensáveis, mas sem alimentar as fontes e as razões humanas e divinas da esperança, não conseguiremos renovar as nossas resistências físicas e psicológicas.
Os meios de comunicação social insistem, a toda a hora, em nos dizerem quantos já morreram, quantos são os infectados, quantos os internados em UCI e quantos os recuperados. Receio que esse contínuo exercício de tabuada acabe por saturar e anestesiar a sensibilidade para a gravidade da covid-19 e para os comportamentos exigidos em todas as situações de risco.
Como vencer, em casa e na rua, no trabalho e no lazer, a ansiedade e o medo de ser infectados? Não sei. Mas, para além das questões de saúde e das dificuldades psicológicas de cada um, o caminho mais adequado e menos heróico parece ser o da prática das medidas mais recomentadas, como a distância física, o uso da máscara e a lavagem das mãos.
Com essas recomendações talvez seja um dos responsáveis pela expansão incontrolável da covid-19. Depois, exige-se à DGS, ao SNS e aos diversos órgãos do poder que sejam infalíveis nas suas decisões e actuações!
Em nome do direito e do dever de cada cidadão praticar o livre e indispensável exercício da crítica, resvala-se com facilidade para a politiquice que mata o sentido da responsabilidade social, cultural e política.
Repete-se que estamos a passar o pior ano das nossas vidas. Investigadores, virologistas, infecciologistas foram todos surpreendidos pelo modo de aparecimento e pela força da covid-19. Ainda hoje, o comportamento do vírus está longe de gerar unanimidade por parte da comunidade científica, o que torna a situação particularmente complicada.
Além disso, o impacto da covid-19 na economia é incalculável. Não se trata, apenas, de mais uma crise. Dizem os entendidos que é a pior crise económica e social desde a Segunda Guerra Mundial. O caos ameaça muitos países e dá a ideia de que ninguém sabe como encontrar um equilíbrio entre o controlo da pandemia e o resgate da economia.
Os cínicos e os tolos, ao dizerem que esta pandemia não passa de uma gripezita, acautelam-se a si próprios com os seus negócios e abandonam as populações à sua selecção artificial.
2. Segundo o calendário litúrgico, entramos hoje num tempo de resistência à resignação e ao fatalismo. A recente mensagem da CEP [1] confessa que “o Deus do Advento vem para o meio da pandemia, pega na nossa mão, muda o coração e envia-nos a mudar a situação”.
nça é a virtude das horas difíceis. O dominicano Tomás de Aquino, servindo-se da filosofia aristotélica, dizia que o objecto da esperança é a luta por um bem futuro, árduo, mas possível de atingir [2]. Ela não é convocada quando o presente é de contentamento, de pura alegria, nem quando o futuro se apresenta como absolutamente impossível de alterar apenas pelas capacidades humanas. Nessa altura, só Deus nos pode valer.
Muitas vezes, terá de ser vivida em situações heróicas, como as descritas nos anos de prisão, pelo cardeal vietnamita Van Thuan [3]. Mas a trémula luz que nos ilumina deve servir para ajudar os que se encontram dominados pelo pânico ou pela miséria. A verdadeira esperança rompe com o egoísmo porque é intrinsecamente solidária.
É neste sentido, mas não só, que deve ser entendida a realização do Encontro Economia de Francesco, de 19 a 21 deste mês, que culminou numa importante Declaração Final e Compromisso Comum, em 12 pontos, endereçada a economistas, empresários, decisores políticos, trabalhadores e a todos os cidadãos do mundo.
Na sua importantíssima vídeo-mensagem, o Papa mostrou que esse dia não era de clausura, mas de relançamento de um trabalho que deve continuar para alterar o rumo da economia mundial. Isto pode parecer impossível, mas não é. Tem de ser um compromisso que leve, adultos e jovens, a realizar o que parece uma utopia, mas que é uma urgente necessidade, reconhecida por muitas vozes nesse Encontro, como uma evidência para quem não fecha os olhos aos efeitos devastadores de uma economia centrada, apenas, na busca do máximo lucro.
Como transformar o que foi vivido, documentado e explicado, nesses dias, em princípios de acção sustentados e estimulados por uma esperança activa? Como é que podem ser convertidas as instituições católicas, que continuam a reproduzir o ensino da economia que mata, numa investigação da economia ao serviço do bem comum, a começar pelos mais pobres?
3. Quem tiver uma visão ritualista do cristianismo dirá que o Advento vem todos os anos, faz parte da rotina litúrgica.
Tomás de Aquino defende que o agir de Cristo, de há dois mil anos, na sua divina energia salvífica, atinge, presencialmente, todos os tempos e lugares [4]. Não é uma realidade apenas do passado. Cristo é nosso contemporâneo. Não se esgota em nenhuma época nem deixa nenhum ponto do globo sem a sua clandestina presença. Cristo acontece no nosso acontecer quotidiano.
É no horizonte do Natal que celebramos o Advento. São celebrações da esperança, não da alegria realizada, mas um protesto contra um destino que parece implacável. É uma esperança em movimento: Cristo acontece no nosso quotidiano, para que este seja alterado, nos torne diferentes, atentos a tudo o que movimenta a história humana, o advento do novo, do que nunca aconteceu.
O Deus de Jesus não é um deus dos mortos, mas da ressurreição de toda a nossa vida. O misterioso nome de Deus dado a Moisés significa: Eu sou Aquele que serei. Como escreveu Frei José Augusto Mourão, O.P., o nascimento de Jesus em Belém é o nascimento de Deus como homem [5], para renascermos como verdadeiramente humanos.
Entretanto, fiquemos com um fragmento do grande poema de Charles Péguy sobre a modesta virtude da esperança, recordado pelo Papa Francisco no seu mais recente escrito [6], pois é ela que nos diz bom-dia todas as manhãs:
“Mas a esperança, diz Deus, essa sim causa-me espanto./Essa sim, é digna de espanto./Que essas pobres crianças vejam como tudo acontece/ e acreditem que amanhã será melhor./Que elas vejam o que se passa hoje e acreditem/ que amanhã de manhã será melhor./ Isso é espantoso e essa é a maior maravilha da nossa graça./E isso a mim mesmo me espanta./ Pois é preciso que a minha graça seja em verdade/ duma força inacreditável./ E que ela brote duma fonte, como um rio inesgotável./ Desde o primeiro momento e corra para sempre.”
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Conferência Episcopal Portuguesa
[2] STH, I-II q.40, a. 1-8: Spei obiectum est bonum futurum arduum possibile adipisci
[3] Van Thuan, Compromisso de esperança. Escritos inéditos de Van Thuan, Paulinas, 2020
[4] STH, III, q. 56, a. 1 ad 2; ad 3: Quae quidem virtus praesentialter attingit omnia tempora et loca
[5] Cf. A Palavra e o Espelho, Paulinas, 2000, p. 12
[6] Il Cielo sulla Terra, Editrice Vaticana, 2020. Cf. Pastoral da Cultura, 24.11.2020