sábado, 21 de novembro de 2020

A intuição cosmoteândrica: a religião do futuro

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

Raimon Panikkar


1. Foi há dez anos que Raimon Panikkar nos deixou, no dia 26 de Agosto de 2010, com 91 anos, em Tavertet, perto de Barcelona. Foi um dos espíritos mais clarividentes do século XX, com um pensamento original, que a presente situação pandémica e a urgência de um novo paradigma de desenvolvimento e uma nova política no contexto de uma terrível crise global, económica e social, que inclui a necessidade de um pacto ecológico para preservar a casa comum, tornam ainda mais actual. É por isso que não podia deixar de voltar a ele, "um mestre do nosso tempo".

2. Estive com Panikkar só numa ocasião, em Barcelona, em 2004. Tinha uma presença cálida, com um sorriso luminoso, e era simples. Uma vez, uma aluna minha, de Barcelona, disse-me que queria muito fazer um trabalho académico sobre o pensamento dele. Achei bem e disse-lhe: "Agora, nas férias, vá falar com ele..." Panikkar deu-lhe 40 minutos e ela, uma jovem, veio fascinada e fascinou os colegas com a descrição do encontro e a exposição do trabalho.

3. Panikkar era uma das maiores autoridades mundiais nas questões do diálogo multicultural e inter-religioso. As suas raízes genéticas, religiosas, académicas, geográficas, deram um contributo decisivo para ser ponte entre mundos: o pai era hindu e a mãe catalã católica; era doutorado em Filosofia, Química e Teologia; viveu uma parte da sua vida na Europa, outra na Ásia, uma terceira na América. Ensinou em muitas universidades, incluindo Harvard. Deixou mais de 50 livros, em várias línguas, que dominava. No meio de uma vida agitada e aparentemente dispersa, manteve, no Uno, a serenidade do monge. É seu o pensamento, retomado pela encíclica de Francisco, Laudato sí, de que tudo está interligado.
Padre católico, regressando da Índia, disse que voltava hindu e budista, sem que isso significasse deixar de ser cristão: pelo contrário, agora era mais cristão. Por isso, para lá do diálogo inter-religioso, defendia o diálogo intra-religoso, isto é, aquele diálogo que cada um deve estabelecer dentro de si mesmo entre as grandes religiões, cuja herança pertence a todos.
Depois dos períodos de isolamento e ignorância recíproca, indiferença e desprezo, condenação, perseguição e conquista, coexistência e tolerância, chegou como "necessidade vital" o tempo do diálogo entre as religiões. É preciso superar o exclusivismo, que afirma que só uma religião é verdadeira (a minha), rejeitando as outras.
O diálogo autêntico só pode ter por base o são pluralismo: todas as religiões são presença do Absoluto, do Mistério salvador, mas nenhuma o possui definitivamente. Este diálogo é constitutivo do ser humano enquanto tal, pois o Homem não é uma mónada fechada, mas uma pessoa, feixe de relações. Por isso, a religião tem de incluir também o diálogo com a Terra, a que chamou ecosofia. Este é o pensamento e a acção implicados numa concepção cosmoteândrica.
Expressão deste pensamento e diálogo de um Homem universal foi o seu funeral: numa celebração solene e íntima, seguiu o rito exclusivamente católico, mas Panikkar deixou instruções precisas para que as suas cinzas fossem repartidas entre a família, o cemitério de Tavertet e o rio Ganges, na Índia.

4. Já Platão distinguiu entre pan, o todo como soma das partes, e holon, o todo estruturado, mais do que a soma das partes. Há muita dificuldade em pensar holisticamente, sobretudo porque a razão moderna é objectivante analítica, separadora, tendo como seu modelo a máquina, que decompõe para refazer e assim dominar. No próprio pensamento religioso, em vez de religação, encontramos frequentemente visões dicotómicas e dualistas: este mundo e o outro, o aquém e o além, a alma e o corpo, o divino e o humano, o interior e o exterior, os de dentro e os de fora, os crentes e os não crentes...
Neste contexto, Panikkar afirmava com razão que é preciso ultrapassar e superar "três dualismos, seis dicotomias e três reducionismos". Torna-se imperioso unir o que tem andado separado. O distinto e o diferente não podem significar separação.
Os dualismos são: Deus e o Homem, o Homem e a natureza. Não se trata agora de confundir, mas de religar. As seis dicotomias são: alma e corpo, masculino e feminino, indivíduo e sociedade, teoria e práxis, conhecimento e amor, tempo e eternidade. Também aqui não se trata, evidentemente, de reduzir tudo ao mesmo, mas de tomar consciência de que uma realidade não existe sem a outra e de mostrar a sua relação intrínseca.
Os três reducionismos são: "O antropológico, que reduz o Homem a um animal racional; o cosmológico, que reduz o Cosmos a um corpo inerte; o teológico, que reduz a Divindade a um Ser transcendente." Impõe-se superar estes reducionismos, porque o Homem não é redutível a animal racional, e, quando se reduz o Cosmos a um corpo inerte, esquece-se a sua dimensão sagrada e viva, e o modo da transcendência de Deus só pode ser este: no mundo, Deus é transcendente ao mundo, infinitamente transcendente enquanto infinitamente presente.
Tudo está em relação com tudo. Ser e ser em relação identificam-se. Não se trata, portanto, de anular as diferenças, já que a unidade sem a diferença seria a mesmidade morta, como as diferenças sem a unidade se anulariam no caos. Assim, a religião do futuro tem de religar o que tem andado separado: Cosmos, Deus e Homem, como se diz na palavra cosmoteândrico e na sua obra, traduzida para português: a intuição cosmoteândrica. A religião do terceiro milénio. Tudo está interligado.

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia. 
Escreve de acordo com a antiga ortografia

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