Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO
Nesta era de extremismos, à esquerda e à direita,
reafirma-se a tentação de responder ao ódio com mais ódio.
São outros os caminhos da política da justiça e da paz.
1. Nós existimos, nós perseveramos no que somos a partir da palavra e do desejo do outro. Tornar-se humano é tornar-se solidário, não apenas com o seu grupo identitário – isso também fazem as formigas – mas exactamente com o estranho, aquele que caiu em desgraça e sobrevive abandonado [1]. É esta observação que guiará esta crónica.
A UNESCO declarou 10 de Novembro Dia Mundial da Ciência para a Paz e o Desenvolvimento. O Conselho Português para a Paz e Cooperação divulgou um texto, de Federico Carvalho, para marcar esta data importante: “Às mulheres e homens que trabalham em Ciência, os trabalhadores científicos, cabe a particular responsabilidade de agir no seio da sociedade em que se integram, mas também como cidadãos do mundo, para que as aplicações do conhecimento científico sejam postas ao serviço do progresso social, que compreende o desenvolvimento económico e cultural, no quadro de uma utilização sustentável dos recursos naturais do planeta. São objectivos que exigem a abolição da guerra nas relações entre estados e nações e o fim de conflitos internos, com o estabelecimento de uma Paz duradoura. Não se trata de uma escolha entre alternativas, trata-se da sobrevivência da humanidade. (...) Nos nossos dias, graças à evolução dos meios técnicos de transporte e de comunicação, as ligações entre países, regiões, continentes, estabeleceram-se a um nível sem precedentes, facilitando a mobilidade de pessoas e bens. Esta realidade é responsável pela rápida propagação da pandemia que, ao contrário do que aconteceu no passado com outras situações pandémicas, hoje estende-se a todo o planeta, atingindo, em maior ou menor grau, o conjunto da população.” [2]
2. Escrevo esta crónica no dia de S. Martinho (316-397). Na tradição popular, é o dia de provar o vinho novo.
Martinho era um militar, não por vontade própria, mas por imposição do seu pai que era tribuno romano. Tornou-se catecúmeno cristão e, durante essa iniciação, percebeu o essencial da nova fé: ao ver um pobre ao frio e esfarrapado, cortou a sua capa ao meio e deu metade a esse mendigo. Era a marca do seu itinerário.
Este Domingo, no calendário litúrgico, é o 33.º do Tempo Comum. O Papa Francisco, no encerramento do Ano da Misericórdia (2017), proclamou-o Dia Mundial dos Pobres.
Pode parecer estranho, pois já existia o Dia Mundial da Erradicação da Pobreza, a 17 de Outubro, promulgado pela ONU, por influência do padre católico Joseph Wresinski (1917-1988). Ele não era, apenas, a voz do povo da miséria, ele pertencia a esse povo, assumiu a sua causa e fundou a Associação ATD Quart Monde.
O Papa Francisco assumiu a tradição inventiva, de homens e mulheres que, desde os Actos dos Apóstolos, passando pelo humor surrealista do diácono S. Lourenço (século III), se tornaram, em todas as épocas até aos nossos dias, a voz dos sem vez e sem voz.
Existem várias obras sobre a erradicação da pobreza, cujas promessas parecem sempre adiadas. Seria absurdo, no entanto, dar esses trabalhos por inúteis, quer a nível nacional quer internacional [3].
Pergunta-se: o que acrescenta o Dia Mundial dos Pobres ao Dia Mundial da Erradicação da Pobreza?
Uma coisa é a investigação, o mais rigorosa possível, das causas sociais, culturais e políticas da pobreza. Outra é a atenção personalizada aos que são vítimas da pobreza imposta. Exige o encontro interpessoal, concreto, afectivo, com os pobres, nossos irmãos esquecidos ou desprezados.
O filósofo e político, António Frederico Ozanam (1813-1853), lutava, no Parlamento, pela erradicação da pobreza. Compreendeu, no entanto, que era preciso mobilizar a consciência de cristãos e não cristãos para a situação concreta dos pobres. Não eram, apenas, uma categoria social, cultural e política, objecto das ciências humanas. Eram pessoas que precisavam de ser reconhecidas e socorridas. Não eram números ou categoria sociais abstractas. Precisavam de calor humano num encontro fraterno. Foi ele o fundador das Conferências de S. Vicente de Paulo. Com o tempo, muitas delas esqueceram-se da sua genuína vocação.
3. São muitos os cidadãos dos EUA que demoram a aceitar o resultado das recentes eleições presidenciais. É uma situação perigosa. Serve para alimentar extremismos e focos incendiários de ódio.
O teólogo espanhol J. J. Tamayo sustenta que os partidos políticos e as organizações da extrema-direita mundial e os movimentos cristãos fundamentalistas formam uma aliança cada vez mais sólida e eficaz na conquista do poder, em todos os âmbitos, fomentando o discurso das práticas de ódio, difundindo uma internacional do ódio.
É certo que o discurso de Joe Biden procurou mostrar que a sua presumível vitória destinava-se a unir todos os norte-americanos: prometo ser um Presidente que não busca dividir, mas unir, que não vê Estados vermelhos e azuis, mas os Estados Unidos; prometo trabalhar para conquistar a confiança de toda a população. Os meus conterrâneos americanos são o povo deste país que nos deu uma clara vitória, uma vitória convincente. Orgulho-me da campanha que fizemos e conduzimos. Estou orgulhoso da coligação que formamos, a mais ampla e diversificada da história: democratas, republicanos e independentes, progressistas, moderados e conservadores, jovens e velhos, urbanos, suburbanos e rurais, gays, héteros, transgéneros, brancos, latinos, asiáticos, americanos nativos.
O teólogo espanhol J. J. Tamayo sustenta que os partidos políticos e as organizações da extrema-direita mundial e os movimentos cristãos fundamentalistas formam uma aliança cada vez mais sólida e eficaz na conquista do poder, em todos os âmbitos, fomentando o discurso das práticas de ódio, difundindo uma internacional do ódio.
Uma das pessoas que mais contribuiu para esse discurso e para essas práticas foi o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, durante os quatro anos do seu mandato. Contou, não apenas com o Partido Republicano, mas também com um sector muito importante e influente do movimento evangélico integrista, os “Evangélicos por Trump”. Com as sagradas Escrituras, judias e cristãs, sustentou a sua política belicista, anti ecológica, patriarcal, xenófoba, sexista e a separação dos país e filhos entre os imigrantes. O apoio veio também de grupos católicos ultraconservadores e de importantes personalidades da Igreja Católica como o cardeal Timothy Dolan, arcebispo de Nova Iorque [4].
Nesta era de extremismos e de tendências extremistas, à esquerda e à direita, reafirma-se a tentação de responder ao ódio com mais ódio, à violência com mais violência. É o caminho da mundialização da guerra, de que fala o Papa Francisco.
São outros os caminhos da política da justiça e da paz.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. José Augusto Mourão, Quem vigia o vento não semeia, Pedra Angular, 2011, p.7
[2] Transcrevi, apenas, um parágrafo desse texto. Merece uma leitura integral
[3] Cf. uma obra fundamental de Abhijit V. Banerjee e Esther Duflo, A Economia dos Pobres. Repensar de modo radical a luta contra a pobreza global, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2012