no PÚBLICO
Neste tempo de desorientação
não é nada enganosa a publicidade que repete:
cuidar de si é cuidar de todos!
1. Estes não são tempos de euforia. As festas que a pretendem imitar acabam sempre em redobrada tristeza. Às loucuras das guerras e novas ameaças de guerras veio juntar-se a devastação mundial provocada pela covid-19 que, além das pessoas que mata e dos recursos que consome, vai deixar muita gente abandonada à miséria. Por isso, não é nada enganosa a publicidade que repete: cuidar de si é cuidar de todos!
É verdade que o incómodo da máscara, da etiqueta respiratória, da limpeza das mãos, da distância física, etc., é muito irritante. Recorrer a sofismas, para dizer que não está cientificamente demonstrada a eficácia desses cuidados, não passa de um exercício de banal e oca retórica.
Ver em todas as medidas governamentais, que tentam impedir o alastramento da pandemia, um atentado à liberdade e aos direitos humanos é uma reacção que roça a paranóia. O coronavírus não costuma respeitar as nossas reais ou fictícias arrelias.
O bom senso, que não precisa de receita médica, aconselha a boa distância entre o pânico imobilizador e o desleixo fatal. O sentido da responsabilidade, pessoal e social, fica mais barato do que o confinamento ou o internamento hospitalar.
Resta um desafio para a nossa imaginação: como reinventar e multiplicar as manifestações de afecto e de bom humor que anulem o mau distanciamento e a indiferença, sobretudo em datas de reunião familiar, como as do Natal religioso ou agnóstico?
Não está bem atribuir sempre à covid-19 o mau costume de substituir razões e argumentos pela agressividade assassina nos meios de comunicação social e na própria Assembleia da República, considerada a pátria da democracia.
O diálogo vigoroso não precisa nem de ser açucarado nem azedo. A amizade política favorece a verdade da informação e o rigor da argumentação, nos debates que visam o bem comum entre os proponentes de projectos diferentes de sociedade. O dissenso entre esses projectos não deveria impedir os consensos, sobretudo, quando calamidades impostas geram graves crises sociais que afectam os mais pobres e débeis.
Como diz M. Correia Fernandes, director da Voz Portucalense, “a nossa imprensa, quer a mais vista lida quer a mais lida (o que não é bem a mesma coisa), tem vindo a assumir um vocabulário que pretende ser apelativo ou pretensamente expressivo, mas que apenas esconde uma mentalidade eivada de violência escondida ou disfarçada. (…) Com palavras construímos e com elas aniquilamos. Com elas apaziguamos e com elas criamos conflitos e guerras. Com o seu mau uso, podemos destruir tanto trabalho feito, tanta proximidade aniquilada, tantas relações construtivas. Quanto relacionamento humano se perdeu por palavras mal ditas!” [1].
Francisco Louçã mostra que, nos dias de hoje, a necropolítica condiciona e transforma a razão democrática de várias formas: “porventura a mais poderosa e que tenho vindo a sublinhar, é a que levanta uma cultura de ódio para se sobrepor à experiência da vida das pessoas. É a necropolítica no sentido puro: o racismo (…). Esta cultura de ódio é social quando é racial, e é sempre social mesmo quando não é racial. O racismo pode ser o seu enunciado mais poderoso, porque mobiliza o recalcado e fornece uma autodesculpabilização dos cúmplices, mas todo o discurso odioso tem por objectivo criar medo e instalar o impensável.” [2]
2. A liturgia deste Domingo começa com um eloquente texto do Antigo Testamento, cheio de lições para o nosso tempo de xenofobia: “Não usarás de violência contra o estrangeiro residente nem o oprimirás, porque foste estrangeiro residente na terra do Egipto. Não maltratarás nenhuma viúva nem nenhum órfão. Se tu o maltratares, e se ele clamar por mim, hei-de ouvir o seu clamor (…). Se emprestares dinheiro a alguém do meu povo, ao indigente que está contigo, não serás para ele como um usurário: não lhe imporás juros. Se penhorares o manto do teu próximo, devolver-lho-ás até ao pôr-do-sol, porque a capa é tudo o que ele tem para cobrir a pele. Com que dormiria? E se vier a clamar por mim, ouvi-lo-ei, porque Eu sou misericordioso.” [3]
Através de gerações e gerações, esquecemos algo elementar: o mundo todo foi e é feito de migrantes. Não fomos os primeiros a ocupar o território em que hoje vivemos. O desprezo ou o ódio pelo estrangeiro, em nome de um nacionalismo cego, tem tanto de antigo como de errado.
Ao pôr limites às fronteiras que o mundo ergueu, o Papa Francisco repete que os nossos esforços, a favor das pessoas migrantes que chegam, podem resumir-se em quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar. Devemos oferecer aos migrantes a possibilidade dum novo desenvolvimento pois, se forem ajudados a integrar-se, eles são uma bênção, uma riqueza e um novo dom que convida a sociedade a crescer.
A paz social é muito trabalhosa, artesanal. Integrar realidades diferentes é muito difícil e lento, embora seja a garantia de uma paz real e sólida. O que conta é gerar processos de encontro, processos que possam construir um povo capaz de recolher as diferenças. Armemos os nossos filhos com as armas do diálogo. Ensinemos-lhes a boa batalha do encontro [4]!
3. Da Segunda Guerra Mundial, Franz Kafka deixou-nos o seu testemunho: “A guerra, a revolução russa e a miséria do mundo inteiro, afiguram-se-me uma espécie de dilúvio do Mal. É uma inundação. A guerra abriu as comportas do Mal. As escoras, que sustentavam a existência humana, partiram-se. O porvir histórico já não repousa no indivíduo e sim nas massas. Atropelam-nos, empurram-nos, varrem-nos. Sofremos a história… Perdemos o conhecimento sem perdermos a vida. O marquês de Sade é o verdadeiro patrono da nossa época, pois não pode alcançar a alegria de viver a não ser através do sofrimento alheio, do mesmo modo que o luxo dos ricos tem de ser pago pela miséria dos pobres.” [5]
No Encontro internacional em prol da paz no espírito de Assis, realizado na Praça do Capitólio (Roma), no dia 20 deste mês, foi lido um grande Apelo de Paz:
Nesta Praça do Capitólio, pouco tempo depois do maior conflito bélico de que há memória na história, as nações que se guerrearam estabeleceram um Pacto, fundado sobre um sonho de unidade que em seguida se realizou: uma Europa unida. Hoje, neste tempo de desorientação, açoitados pelas consequências da pandemia covid-19, que ameaça a paz ao aumentar as desigualdades e os medos, digamos com força: Ninguém pode salvar-se sozinho, nenhum povo, ninguém!
Os que pensam que se podem salvar sozinhos perderam a memória desse Pacto histórico.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Voz Portucalense de 07.10.2020
[2] Cf. Francisco Louça, Choque e pavor serão o futuro da política? Revista Expresso de 17.10.2020
[3] Ex 22, 20-26
[4] Cf. Fratelli Tutti, n.º 129-135 e 217
[5] Cf. Charles Mœller, Literatura do século XX e cristianismo, Vol. 47 III, Esperança dos Homens, Flamboyant, São Paulo, 1959, pp. 346-347