no Diário de Notícias
Pietà de Miguel Ângelo
1. Agora, a seguir ao almoço e ao jantar, vou dar a minha volta junto ao mar, caminhando num passadiço de quilómetros na areia. Dali, contemplo o mar, sempre o mesmo e sempre novo, uma das mais belas imagens do infinito, e o Sol a incidir sobre ele ou a pôr-se (para onde irá ele?) e aquele esplendor de beleza em movimento que deslumbra (quem é que pinta lá no horizonte aquelas cores e figuras que nenhum pintor sabe pintar?). Encontro gente e medito e até organizo os textos que aqui publico e outros...
Mas, quando estava em Roma a estudar, a seguir ao almoço, ia à Basílica de São Pedro. Para parar e contemplar a Pietà de Miguel Ângelo. Está ali, e nunca se esgota, porque a beleza nunca acaba, pois é outro nome do divino, a compaixão toda do mundo. Não é em vão que se chama a Pietà, a Piedade. Naquela mãe, Maria, com o Filho Jesus morto nos braços, ele que foi vítima de um assassinato político-religioso, a gente vê a ternura toda, as lágrimas todas, de todos, e fica imóvel e mudo, enternecendo-se também, e é outro.
Veio-me à mente esse tempo, porque há dias a Pontifícia Academia para a Vida postou no Twitter uma fotomontagem da escultura de Miguel Ângelo com um Cristo negro no regaço de Maria. Choveram as reacções, contraditórias: uns elogiaram o gesto, numa mensagem forte contra o racismo; outros indignaram-se com a “blasfémia”: “O que querem com isto? Onde está o nosso Jesus?” Que não se deve tocar em Miguel Ângelo: não há um “Jesus negro” nem “um Jesus branco”, “Cristo é um só”.
Foi uma provocação? Foi. Mas não tocou em Miguel Ângelo nem na sua famosa escultura. Trata-se tão-só de uma provocação chamando a atenção de todos para que a vida de todos importa, evidentemente também a dos negros. Não sabem os cristãos que Jesus se identificou com todos, a começar pelos mais abandonados? “Destes-me de comer, de beber, de vestir, fostes visitar-me ao hospital e à cadeia...”. Maria, a mãe de Jesus, acolhe nos seus braços maternos todas as vítimas, como acolheu Jesus. E não há nenhum problema na associação com o movimento Black Lives Matter. Todas as vidas merecem respeito. Com esta imagem estamos, está-se a dizer que as vidas dos negros são importantes, como todas as outras vidas. Não foi através do cristianismo que veio ao mundo a ideia de pessoa e da dignidade infinita, porque divina, de todas as pessoas? E não foi com base no cristianismo que nasceu a consciência dos direitos humanos? Onde foram proclamados? Não foi em Pequim nem na Arábia Saudita.
Nós não temos nenhuma fotografia do Jesus histórico, real. Por isso, há muitas possibilidades de o imaginar. Esta fotomontagem é também uma forma de dizer que Jesus Cristo é o Salvador universal e, como Homem universal, tem muitos rostos. É absolutamente natural que em África o representem negro, na Ásia apareça com rosto asiático... O ser humano é sempre o resultado de uma herança genética e de uma cultura em história, e é preciso, como acentua o Papa Francisco, que o Evangelho se insira e encarne nas várias culturas.
2. Eu não sabia. Fiquei a saber por Júlio Machado Vaz que, em conexão com a luta contra o racismo, há também uma “campanha mundial contra a discriminação pela idade”. São quarenta as organizações de todo o mundo que lançaram a Old Lives Matter contra o idadismo. Foi também por Júlio Machado Vaz que soube que a Sociedade Francesa de Geriatria e Gerontologia veio sublinhar que afinal o idadismo é “a discriminação mais universal e aumentou durante a pandemia, sobretudo pela ausência de diálogo com os interessados e as suas famílias quanto às medidas tomadas, em particular no quadro das instituições. Acrescentam os investigadores que os mais velhos discriminados vivem, em média, menos sete a oito anos.”
A vida dos idosos — a campanha não teve receio em dizer dos velhos — também importa, vale, como todas as vidas. Por isso, quando observo o tratamento que lhes é dado, até porque vivemos numa sociedade economicista e do descarte, só posso estar em total acordo com Machado Vaz, quando, criticamente, num apelo dramático à solidariedade, ergue estas perguntas: “Estaremos condenados a olhar com angústia o tempo suplementar de que dispomos, oferecidos pela ciência e por estilos de vida mais saudáveis? Não apenas pelos achaques normais da idade, mas por força de uma sociedade que recusa a cidadania plena a gentes cujas rugas invadem a pele e por vezes, dramaticamente!, os neurónios, mas não o coração?”
3. É neste contexto das campanhas que gritam: “as vidas dos negros importam”, “as vidas dos idosos importam”, que é necessário e urgente levantar a questão, que esteve apenas suspensa (com medo de quê?, não era oportuno porquê?, quando é que é oportuno?), referente ao debate parlamentar na especialidade e votação das leis da eutanásia aprovadas em Fevereiro. Afinal, não importam as vidas de todos? Estou com Miguel Oliveira da Silva: eu também “gostava de saber, dos mais de 1970 doentes que morreram com covid-19, quantos pediram para serem eutanasiados ou falaram disso com os médicos.” All Lives Matter: todas as vidas são importantes, valem.
Que legitimidade tem o Parlamento, se os dois maiores Partidos não incluíram a eutanásia nas campanhas eleitorais? Poderá ter legitimidade legal, mas não tem legitimidade ética, moral. E seria uma vergonha se, num regime democrático, a Assembleia da República ousasse ignorar o pedido de referendo sobre a questão com 95.287 assinaturas.
Anselmo Borges
No DN