Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO
«As relações conflituosas entre o Vaticano e a Teologia da Libertação, nas suas diversas expressões, são conhecidas, estão documentadas e publicitadas. Agora, essa teologia tem em Roma o seu foco mais vivo e provocador: o próprio Papa Francisco, libertário e libertador a muitos títulos e de muitos modos.»
1. Fui várias vezes interpelado por alguns leitores sobre a falta, nas minhas crónicas mais recentes, de alusões à Teologia da Libertação (TL) sobre a qual, no passado, neste jornal e noutras publicações, me tinha ocupado com alguma insistência. A leitura de uma curiosa obra, com o título desta crónica, ajudou-me a perceber as deslocações da minha reflexão por fidelidade ao método de me deixar interrogar sempre por novos sinais do tempo.
Depois de ter dirigido os Cadernos de Estudos Africanos – expressão do meu ciclo africano durante a guerra civil em Moçambique e Angola – passei a trabalhar na América Latina, a começar pelo Peru, aterrorizado, então, pela guerrilha do Sendero Luminoso. As primeiras crónicas da minha colaboração no PÚBLICO, há 28 anos, testemunham esse multifacetado ciclo ameríndio [1]. Perguntam-me também se considero a TL ultrapassada e sem significação para o mundo actual. Será que os pobres, como sujeitos sociais, marca dessa teologia, perderam o protagonismo que então lhes foi atribuído?
De facto, preocupei-me mais com a libertação da Teologia do que com a Teologia da Libertação que não precisava de ser justificada. Triste era a teologia da opressão ou, mais precisamente, a conivente com os autoritarismos eclesiásticos, políticos e militares.
Quando, por obra e graça de João XXIII e do Vaticano II, por ele desencadeado, a liberdade parecia tornar-se o regime definitivo na Igreja, veio alguns anos depois um longo inverno, como lhe chamou K. Rahner. Aconteceu sobretudo durante o tempo em que o Cardeal Ratzinger foi Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. A censura exerceu-se sobre todas as formas relevantes de prática teológica, fossem elas da Europa, da América Latina, da África ou da Ásia. Foi uma época perdida por miopia, pela suspeita difundida nos meios eclesiásticos sobre as inovações mais prometedoras.
Entretanto, os grandes teólogos também envelhecem e morrem. Nem todos dispuseram de condições e clima para que o seu espírito criador provocasse discípulos audazes para novos tempos e novos mundos. Alguns consolam-se pensando que o império da presente mediocridade pode provocar a urgência da mudança.
2. Não considero o desânimo e o baixar dos braços bons conselheiros para as épocas difíceis. Os “milagres” existem, mas é preciso ajudá-los. Como já tenho alguma idade, tive a graça de ser testemunha de dois acontecimentos espantosos. O primeiro – a seguir a um regime autoritário – foi a eleição do velho cardeal Roncalli. Dele surgiu a atrevida e lúcida juventude de João XXIII. Cinquenta anos passados, depois de muitos escândalos encobertos, foi pela eleição do cardeal argentino, Jorge Mario Bergoglio, que recebemos o prodigioso Papa Francisco e a coragem de não desistir, sejam quais forem os obstáculos e as armadilhas que continuamente lhe preparam.
Foram muitos os que anunciaram o seu fim para breve. Uns porque não suportam que ele continue a arruinar privilégios de sempre e para sempre; outros porque receiam que ele não vá ter saúde e tempo para as reformas que empreendeu e para as iniciativas, projectos e movimentos com que continuamente nos surpreende.
As relações conflituosas entre o Vaticano e a TL, nas suas diversas expressões, são conhecidas, estão documentadas e publicitadas. Agora, essa teologia tem em Roma o seu foco mais vivo e provocador: o próprio Papa Francisco, libertário e libertador a muitos títulos e de muitos modos. Ele ampliou as suas causas, os seus temas, aprofundou o seu método. Tem poderosos adversários, mas também muitos seguidores entre crentes, agnósticos e ateus. Com ele, a periferia imensa de pobres, explorados, oprimidos, vítimas das guerras, da economia que mata, passou para o centro de um desejado mundo novo em dolorosa gestação.
3. Para não desesperar, vale a pena reflectir no seguinte contraste:
Em 1983, o Cardeal Ratzinger enviou dez observações, sobre a teologia de Gustavo Gutiérrez, ao Episcopado peruano. Não eram para o reconhecer, mas para o tornar irreconhecível.
Em Setembro de 2013, o Papa Francisco recebeu este dominicano, considerado o “pai” da TL, na Casa de Santa Marta, e abraçou-o fraternalmente. Voltou a reunir-se com ele, em Lima, no início de 2018, durante a sua visita ao Peru. Ainda no ano passado, quando o teólogo peruano completou 90 anos, o Papa enviou-lhe uma carta muito afectuosa: “Uno-me à tua acção de graças a Deus e agradeço-te pela tua contribuição à Igreja e à humanidade, através do teu serviço teológico e do teu amor preferencial pelos pobres e descartados da sociedade.” Nessa missiva, Francisco agradeceu também a Gutiérrez os seus esforços e a sua “forma de interpelar a consciência de cada um, para que ninguém fique indiferente perante o drama da pobreza e da exclusão”.
O convite a Frei Gustavo Gutiérrez, para falar em Roma, pôs fim a décadas de suspeita acerca do seu pensamento teológico e salvaguarda o aspecto mais relevante da TL: a opção preferencial pelos pobres, um conceito para o qual o Vaticano II abriu caminho e que as Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano consolidaram.
Este frade dominicano não gosta de falar de si mesmo. No entanto, acedeu, em 2012, a ser entrevistado, durante quase três horas, sobre o seu itinerário que pode ser lido no jornal La Croix (24.03.2012).
Destaco apenas um ponto – o da pobreza – que continua a ser uma grande fonte de confusões e que ele esclareceu de forma luminosa, distinguindo pela primeira vez três dimensões da pobreza: a pobreza real de todos os dias “não é uma fatalidade, mas uma injustiça”; a pobreza espiritual “consiste em colocar a própria vida nas mãos de Deus”; a pobreza como compromisso “leva a viver em solidariedade com os pobres, a lutar com eles contra a pobreza, a anunciar o Evangelho a partir da situação injusta em que se encontram”.
Sobre o significado da TL, as Edições Paulinas publicaram um livro curioso [2]. Reúne textos convergentes de dois mundos muito diferentes: do próprio Gustavo Gutiérrez e do Cardeal Gerhard Ludwig Müller, que foi Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, um teólogo alemão convertido à prática teológica do indígena peruano.
Este Cardeal atreve-se a dizer que “é possível que a Teologia da Libertação, na conjuntura da opinião pública, tenha perdido interesse. Em relação aos insolúveis problemas de fundo, ela presta um auxílio indispensável ao serviço transformador, reflexivo e pastoral da Igreja de Cristo à humanidade”.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. Frei Bento Domingues, O.P., A Humanidade de Deus, M. Figueirinhas, Porto, 1995
[2] Gustavo Gutiérrez e Gerhard Ludwig Müller, Ao Lado dos Pobres. A Teologia da Libertação é uma Teologia da Igreja, 2014