quarta-feira, 2 de setembro de 2020

NOME DA GAFANHA

Artigo de João Gaspar
Padre e historiador 


 João Gaspar
Uma questão que não deixa de espevitar a nossa curiosidade é a de saber a origem das palavras, designadamente os nomes de pessoas e de povoações e o que eles radicalmente significam. Tantos e tantos antropónimos e topónimos, se fossem bem entendidos e bem assimilados, indicariam programas para a vida de pessoas e para a história de povoações.
Aqui e agora, dou a minha opinião sobre o significado da palavra 'Gafanha' e sobre o porquê da sua primitiva e secular aplicação a uma larga zona chã, senão mesmo pantanosa, à beira do mar e da ria. Sem menosprezo de alguém, não me refiro às outras explicações ou hipóteses. Foram elas explanadas pelo padre João Vieira Resende, por Augusto Soares de Azevedo Barbosa de Pinho Leal, por Américo Costa, pelo dr. Joaquim Tavares da Silveira, pelo prof. dr. José Leite de Vasconcelos e pelo padre Manuel Maria Carlos... e agora pelo Cardoso Ferreira.
Em 1853, Pedro José Marques ainda registou o topónimo 'Galafanha' (Diccionário Geográphico abbreviado das oito províncias dos Reinos de Portugal e Algarves, Lisboa, 1853), informando que se tratava de uma zona territorial da freguesia e do concelho de Vagos; nessa ocasião, porém, já vulgarmente de dizia 'Gafanha'. Muito mais tarde, em 1938, Américo Costa, no seu Dicionário {Diccionário Chorográphico de Portugal Continental e Insular - etc, VI volume, editado em 1938) apontou igualmente o mesmo topónimo 'Galafanha', embora remetendo a sua explicação para o étimo 'Gafanha; decerto pretenderia que não se perdesse uma designação que julgava anterior à então corrente e usual.
'Galafanha' tem-me servido de pista para, em confronto com outros nomes de povoações e de locais relacionados com 'água', descobrir algo mais consentâneo a esta região da Gafanha e com os primitivos juncos nascediços ou ervas selvagens, que por aqui foram aparecendo e reproduzindo-se sem qualquer entrave, na água ou em terras estéreis e areais secos. Dentro dos meus limitados conhecimentos, agrada-me ver esse topónimo como um composto de dois antiquíssimos étimos ou radicais diferentes - 'gala' e 'fânia' - ambos de procedência pré-romana que, como outros, continuariam a ser comuns no linguajar do povo, por vezes com feição latina. Vou deter-me neles, separadamente.
GALA. Como primitivamente os povos aprenderam a falar por onomatopeia, imitando os sons característicos da natureza e do barulho das coisas, as palavras antigas eram quase todas monossilábicas ou dissilábicas; além disso, as consoantes, que são letras para soarem juntamente com os caracteres principais do alfabeto - as vogais - por vezes aparecem-nos diferentes. No caso de 'gala', usado pelos celtas, encontramos variantes como 'ala', 'cala', 'pala', 'sala', 'tala', 'vala', etc. - todas a quererem significar zonas lacustres, terras pantanosas ou lamacentas, regiões de argila ou de barro. Exemplificando, anotam-se alguns topónimos e outras palavras portuguesas em que talvez entre este radical, vulgaríssimo entre os celtas, que era um povo habituado a viver e a trabalhar na agricultura e na floresta à beira de rios, de lagos e de mares: - Alavário (Aveiro), Talavário (Taveira), Talábriga, Alviela, Alagoa, Lagoa, Alaguela (Eixo), Alavóo (Avô - povoação), Alabói (Albói), Alafoen (Lafões), Alamenara (Al- miar), Alazira (Lezíria), Alavos (Lavos), Alverca, Álamo, Calafate, Cale (Gaia), Cale (corrente de água), Gala, Sala (Sá - povoação), Pala (povoação), Calado (altura da parte imersa do barco), Caladunum (citânia à qual se seguiu Mirandela), Ave (rio), Vala, Vale, etc.
Porventura, não será toda a zona das Gafanhas uma extensa 'Gala', maior do que a dos arredores da Figueira da Foz? Estes terrenos eram pantanosos - e alguns ainda continuam a ser - que foram sucessivamente habitados por colonos e preparados para a exploração agrícola e para a produção do sal. Concluindo, convenhamos que o topónimo 'gala', muito anterior ao povoamento, coadunava-se muito bem com o cariz geológico da região.
Resta-me que aluda agora o outro radical, donde surgiu a palavra FÂNIA. Antes de mais, convém esclarecer que a terminação deste vocábulo em 'ia' indica tratar-se de um plural, de um conjunto, de um coletivo ou de uma amplidão; basta recordar, como exemplo, os nomes de algumas regiões e de alguns países, antigos e modernos. Além de outros, assim aconteceu com Lusitânia e também com 'Spânia', que designa a Península Ibérica e que os gregos e os romanos também escreveram 'Ispânia' ou 'Hispânia'. Apenas enumero também alguns nomes dos nossos dias: - Ásia, Rússia, Suécia, Grécia, Turquia, Síria, Itália, Gália...
Contudo, fixando-me no étimo coletivo 'fânia', pode facilmente concluir-se que teria derivado de 'fan'. Entre os celtas e mesmo entre os egípcios, 'fan' significaria um leque, feito de juncos ou de outras plantas herbáceas da família das juncáceas. Mas suponho que talvez a palavra 'fan' seja contemporânea ou um pouco posterior de 'pan', que até é o nome do deus mitológico romano, protector dos bosques e das pastagens, e parece estar na raiz da palavra latina 'pannus' (em português 'pano'), tecido de fios de linho, de algodão ou de outras ervas, e mesmo de filamentos de lã. No antigo inglês, 'fan' significava leque ou coisa parecida; e no francês atual 'fane' diz-nos terra seca com ervas nascediças. No nosso idioma antigo, usava-se 'fânio' para designar uma espécie de junco, semelhante ao papiro - planta essa própria das margens dos rios e dos lugares inundados. Há vocabulários e dicionários que continuam a registá-la. E no Brasil ainda hoje se chama 'fanfã' a um arbusto selvagem da família das plantas malváceas, que prolifera na Amazónia, sobretudo na ilha de Marajó. Certos povos, não tendo a consoante 'p', substituíram-na por 'f' (árabes) ou por 'pfi' (gregos).
A propósito, lanço mais umas interrogações: - 'Pântano', 'pantanal' e 'pampa' não serão terrenos encharcados que assim se chamam por neles se reproduzirem e cresceram as plantas 'fan' ou 'pan'? 'Panamá' não terá a mesma origem, pois trata-se de uma região e de um país onde se cultivava e donde se exportava o junco para o fabrico dos chapéus ditos 'panamás'? E a um campo cheio de ervas selvagens, de pampilhos ou de juncos não se denomina por 'panasco' ou 'panascal'? Em Portugal até podemos conjeturalmente encontrar topónimos com a mesma proveniência, como Fão, Fanhais, Fanhões e mesmo Panões.
Resumindo: - 'Gafanha' filiar-se-ia no étimo anterior 'Galafanha', cujas duas primeiras sílabas se contraíram ou a segunda caiu, como aconteceu com 'Alavário' e 'Talavário' que deram Aveiro e Taveiro; por seu turno, 'Galafanha' seria o resultado da evolução semântica de 'Galafânia'. Assim, tal designação significaria uma dilatada zona em parte lacustre e em parte pantanosa ou de terra e areia seca, abundante em espécies de junco, papiro e ervas selvagens. Também o dr. Joaquim Tavares da Silveira, em 1942, apontou que, na sua aldeia da Fogueira (Sangalhos), ainda conhecera um baldio arenoso e sáfaro, povoado de magras e descontínuas moitas de mato, chamado 'Gafanha' (cf. padre João Vieira Resende, Monografia da Gafanha, 2ª ed., pg. 14).
Esta coincidência de nomes para locais semelhantes não virá corroborar a etimologia que apresento - terreno areento, pantanoso, alagadiço ou encharcado, que produz juncos e ervas ou plantas silvestres? Apenas levantei aqui uma etimologia diferente daquela ou daquelas que habitualmente se apresentam para o geónimo 'Gafanha'. Oxalá que esta hipótese possa servir de base para um estudo mais aprofundado da origem e da história da região e das terras da Gafanha.

João Gaspar

Nota: Artigo transcrito,  com a devida vénia, do "Correio do Vouga", 
semanário diocesano de Aveiro

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