Continuo a conversa com Hans Küng em 1979, incidindo sobre a esperança para lá da morte.
Para si, Jesus Cristo é o determinante na vida e na morte, o Filho de Deus. Pergunto-lhe: é Deus que nos salva ou é Cristo?
É o próprio Deus que nos salva através de Cristo. Não podemos de modo nenhum ver Cristo sem Deus. De contrário, não teria sentido para nós. Como também não podemos, enquanto cristãos, ver Deus sem Cristo. Caso contrário, Deus torna-se vago para nós.
Mas somos nós, os cristãos, que somos salvos através de Cristo ou são todos os homens? Isto é, mesmo aqueles que pertencem a outras religiões são salvos através de Cristo?
É claro que os homens que pertencem a outras religiões se podem salvar. E é evidente que só se podem salvar através do único Deus, pois há um só Deus. Em terceiro lugar, só se podem salvar através do Deus que nos foi revelado em Cristo, que, portanto, é o Deus da misericórdia, o Deus da graça, que Cristo nos revelou.
A ressurreição de Cristo é essencial no cristianismo...
Se Cristo não tivesse ressuscitado, a nossa fé seria vã, diz o apóstolo Paulo. E esta é também a minha convicção.
Mas é necessário não tomar à letra e como narrações históricas todas as representações que se referem à vida nova de Cristo. O importante e decisivo é concentrar-se no essencial da Boa Nova da Ressurreição. Ora, o que é o essencial da Boa Nova da Ressurreição? A Boa Nova da Páscoa significa isto: este Crucificado, que realmente morreu, não morreu para o nada, mas foi assumido na vida eterna de Deus. Ele vive com Deus seu Pai, através dEle e nEle. E isto significa para nós uma esperança.
Ele vive como pessoa?
Ele vive como pessoa, ele vive enquanto identicamente o mesmo que viveu na Terra. Caso contrário, não significaria nada para nós.
Ele vive como esperança para nós: nós também enquanto pessoas continuaremos a viver. Todos os que o seguirem com perseverança viverão também. Ele vive como desafio e estímulo para nós. Daí que o nosso dever seja fazer com que o seu caminho seja o nosso caminho, o seu modo de viver e morrer seja o nosso.
Hoje, para nós, o problema da imortalidade torna-se muito complicado, pois tínhamos o esquema dualista, que era talvez simplista, mas servia de ajuda. Ora, hoje todos esses esquemas estão ultrapassados. Portanto, sobre que é que podemos apoiar a ressurreição e a vida eterna?
Eu diria que cada pessoa, crente ou não, está perante uma alternativa. Mesmo o não crente perguntar-se-á: o que é que significa para mim a morte? Significa que todo o meu pensamento, toda a minha acção, todo o meu sofrimento, todo o meu amor, tudo aquilo que realizei, tudo aquilo por que me bati, tudo isso vai parar ao nada? Esta é uma alternativa.
Frente a esta alternativa só há uma outra: esta realidade que nós aqui captamos, tudo aquilo que nós podemos captar e manipular, tudo isso não é a Realidade última. Há a possibilidade — eu acentuo: a possibilidade — que o Homem, em vez de morrer para o nada, morra para a Realidade última, que é também a Realidade primeiríssima.
Quando perguntamos qual é o fundamento para isso, eu digo: confio que é assim. Eu confio, pois não se pode provar. Mas quem diz que morre para o nada, também não pode prová-lo. Esse tem uma desconfiança radical no Fundamento último e Sentido último da realidade. Eu, pelo contrário, tenho uma confiança radical no Fundamento e no Sentido último da realidade. Eu posso apenas afirmar que a desconfiança radical não apresenta qualquer racionalidade, que, em última análise, ela é não racional, pois, sem esta confiança radical, tudo se torna não racional e absurdo.
A minha solução, a minha resposta é, pois, uma confiança radical racional. A racionalidade mostra-se no próprio acto de confiar: com ele e nele, tudo se torna mais razoável, iluminado. Eu tenho todas as razões para ter esta confiança. De facto, tudo aquilo que há milhares de milhões de anos acontece na História e que talvez ainda continue por milhares de milhões de anos para o futuro, tudo isso não provém do nada nem vai para o nada. Provém de um Fundamento último, que é também Fim último, não só do cosmos, mas também da minha vida.
A este Fundamento último e Fim último do cosmos e da nossa existência chamamos Deus.
Do ponto de vista antropológico-metafísico, não pode demonstrar que haja em si qualquer coisa que exija a imortalidade...
Eu não posso demonstrar nem o nada nem Deus. Se pudesse demonstrar Deus, já não seria Deus. A fé é como o amor. O amor não se pode demonstrar. Se um homem disser à mulher: tu deves demonstrar que me amas, então o amor não é possível. No amor, é necessário colocar em primeiro lugar a confiança. Na fé, passa-se a mesma coisa: é necessário avançar com a confiança. Eu devo confiar-me e, na medida em que confio, vejo que se trata de uma resposta plena de sentido e que a vida tem sentido.
Havia filósofos que através de argumentos filosóficos afirmavam que há em nós qualquer coisa que ontologicamente é imortal. Não pode dizê-lo...
Eu não me preocupo muito com essas coisas, com a ideia platónica da imortalidade da alma. Creio que são representações de algum modo simplistas, e hoje, com o avanço das ciências biológicas, antropológicas, etc., já não nos é permitido separar tão facilmente alma e corpo.
Como é que se deve esclarecer o problema da vida eterna não nos compete a nós. Isso é mistério para nós, como o próprio Deus é mistério, que nem com a ontologia podemos tornar claro.
Anselmo Borges no Diário de Notícias