sábado, 5 de setembro de 2020

Bento XVI. Uma vida. 5

Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias



1. Em 1981, Ratzinger partiu para Roma, nomeado pelo Papa João Paulo II Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, a antiga Inquisição. “Ninguém o advertiu desta missão impopular?” Resposta: “Eu não precisava de advertência nenhuma. Era para mim claro que me lançava às urtigas. Mas tinha de assumi-la”. Foi como “colaborador da verdade”. 
1.1. Em Abril de 2005, faleceu João Paulo II, que, com 5 milhões de participantes, teve o maior cortejo fúnebre da História. Com tristeza, Ratzinger presidiu às exéquias. 3500 jornalistas marcaram presença, mais de mil milhões de pessoas seguiram o acontecimento ao vivo nas televisões, havendo quem fale em dois mil milhões, com as televisões de todos os países, exceptuando a China, a transmitir imagens do acontecimento. 
Mas, paradoxalmente, “a influência da Igreja na era Wojtyla retrocedeu”. O pontificado de João Paulo II deixava uma Igreja com muitas feridas. Por exemplo, no seu pontificado, com o apoio de Ratzinger, foram condenados mais de 100 teólogos. Houve ambiguidade quanto aos abusos sexuais do clero; o próprio Ratzinger enviou em 2001 uma carta a todos os bispos sobre estes delitos, dizendo que todos os casos ficavam sob “segredo pontifício”. Com as imensas viagens papais, a vigilância sobre a Cúria afrouxou... 
1.2. Ratzinger, agora, o que queria era “ir para a reforma e escrever livros”. Mas, no dia 19 desse mês de Abril, o novo Papa, com o nome de Bento XVI, compareceu na varanda de São Pedro apresentando-se como “um simples trabalhador na vinha do Senhor”. Para ele, era “um dever” aceitar. “Rezai por mim, para que diante dos lobos não fuja temeroso”. Küng falou de “uma tremenda desilusão”. 
1.3. Ratzinger, “o primeiro Papa do terceiro milénio”, era, “do ponto de vista formal, o Papa mais poderoso de sempre. Nunca a Igreja Católica estivera tão espalhada pelo mundo”. Mas os problemas eram imensos. E os lobos não largavam a vinha do Senhor. No dia 11 de Fevereiro de 2013, após segredo total, Bento XVI, para espanto dos cardeais reunidos, declara a sua renúncia ao pontificado, com efeito a partir do dia 28. Que já não tinha “forças nem físicas nem espirituais”. “O Senhor chama-me para subir o monte.” O seu sucessor, Francisco, foi eleito no dia 13 de Março seguinte. 
Com a resignação de Bento XVI, deu-se, como diz Seewald, “o início de uma nova era”. 

2. Concordo com ele. Por isso, deixo agora Ratzinger, para, no contexto do percurso tão exaltante como dramático do indevidamente chamado Papa emérito — nada justifica teologicamente essa designação: ao resignar, o Papa torna-se Bispo emérito de Roma —, reflectir principalmente sobre a urgência de uma organização diferente para a Igreja, pois é isso que a renúncia de Ratzinger acaba por exigir. 
Há um paradoxo na Igreja, como explicitou o sociólogo Olivier Robineau: “A Igreja Católica é uma junção paradoxal de dois elementos opostos por natureza: uma convicção — o descentramento segundo o amor — e um chefe supremo dirigindo uma instituição hierárquica e centralizada segundo um direito unificador, o direito canónico. De um lado, a crença no invisível Deus-Amor; do outro, um aparelho político e jurídico à procura de visibilidade. O Deus do descentramento dos corações que caminha ao lado de uma máquina dogmática centralizadora. A antropologia católica tenta associar os extremos: a graça abundante e o cálculo estratégico. Isso dá lugar tanto a São Francisco de Assis como a Torquemada.” 
A mensagem da Igreja é clara e decisiva para a Humanidade inteira, e vem de Jesus: Deus é Amor, Pai/Mãe que ama a todos e o seu interesse é tão-só a realização plena e a felicidade de todos, não abandonando ninguém, nem mesmo na morte. Há na História da Humanidade notícia melhor, mais felicitante? Ela está na base da tomada de consciência da dignidade inviolável da pessoa humana, da liberdade, da fraternidade, da igualdade radical de todos, dos direitos humanos. 
Evidentemente, a mensagem é o núcleo. Mas é igualmente evidente que, onde há muita gente, muitos e muitas e espalhados por toda a Terra, se impõe um mínimo de organização, que tem de ser meio e não fim, ao serviço da mensagem. Não foi, como se lê no Evangelho segundo São Mateus, o que Jesus disse a Pedro, o primeiro Papa, louvando-o, porque proclamou que Ele é o Messias, mas chamando-o de Satanás, porque pensou que a salvação vinha mediante o poder? Que diria Jesus hoje do Vaticano, das suas intrigas, escândalos, ostentação? Não é da Cúria que se queixa o sucessor de Ratzinger, Francisco? 
Afinal, quem decide na Igreja? Muito poucos, homens celibatários e de idade avançada, numa Igreja piramidal, centralizada, clerical, misógina, europeísta, sem separação de poderes. Francisco quer uma Igreja sinodal, com a participação de todos. Numa obra importante, Quem manda na Igreja, o sociólogo católico Javier Elzo apresenta outro modelo para a Igreja do século XXI: “Uma Igreja em rede, à maneira de um gigantesco arquipélago que cubra a face da Terra, com diferentes nós em diferentes partes do mundo, inter-relacionados e todos ligados a um nó central, que não centralizador, que, na actualidade, está no Vaticano. Aí ou noutras partes do planeta, todos os anos se reuniria uma representação universal de bispos, padres, religiosas e religiosos, leigos (homens e mulheres), todos sob a presidência do Papa, para debater a situação da Igreja no mundo e adoptar as decisões pertinentes” e iluminar os gigantescos problemas da Humanidade. 

Anselmo Borges no DN 

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