Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO
1. Devido à pandemia, o começo do novo ano escolar não pode deixar de provocar ansiedade em todas as pessoas que estão envolvidas no processo educativo. As imensas dificuldades, o medo, as dúvidas e incertezas não são exclusivas das famílias, das escolas, dos governos. Já verificamos que o choque da covid-19, de modos muito diversos, afecta toda a sociedade, em todas as suas expressões.
É uma banalidade dizer que a educação é um dos factos mais gerais e mais constantes da história do ser humano, que não é apenas natura, biologia, instinto, mas história cultural. Sem uma comunidade educativa, que o possa ajudar a desenvolver as suas capacidades criativas, o ser humano manter-se-ia perante os desafios da vida, apenas como o ser menos equipado do reino animal.
É pelos diversos processos educativos, das diferentes culturas, que ele acolheu e desenvolveu a capacidade de pensar, comunicar, sonhar, experimentar, realizar e fazer acontecer o novo, o futuro, seja no registo da esperança ou da utopia. Como escreveu Gaston Berger, tudo começa pela poesia, nada se faz sem a técnica.
Nas sociedades modernas, sem as ciências e as técnicas, sem os cuidados da saúde, sem novas formas de trabalho e sem a escola de realidades e ilusões, a vida humana parece inconcebível, embora seja a situação da maior parte da humanidade. Hoje, começamos a saber que, sem uma profunda conversão ecológica, o futuro está ameaçado.
A covid-19 alastrou por todos os continentes. Quando poderemos dispor de vacina acessível a toda a gente de todos os países? Até lá, o sentido da cidadania deve começar – sempre que possível – pelos cuidados e pelas práticas recomendadas pelas autoridades sanitárias. Importa destacar: quem, podendo, não as segue, é louco. Nem o pânico nem o desleixo são boas companhias para este tempo [1].
2. Nesse sentido, é desejável que a indispensável competição político-partidária não esqueça que uma educação integral é um bem a promover por toda a sociedade. Exige, por isso, a procura de consensos, alimentados por diálogos vigorosos, em função de soluções possíveis, em cada situação e em cada momento. Importa, nesta hora difícil, vacinar-se contra as diversas tentativas apostadas em criar um clima social manipulado, de crispação crescente e generalizada. A maledicência é um vírus pior do que a covid-19, disse o Papa Francisco.
A amizade civil, defendida por Tomás de Aquino, é compatível com caminhos diferentes para alcançar o bem comum, com a promoção de alternativas políticas, com o poder democrático de servir e que recusa as estratégias e tácticas fraudulentas de dominação.
Não digo que os recentes abaixo-assinados, em torno do direito à objecção de consciência dos pais que não queiram que os seus filhos frequentem as aulas de Educação para a Cidadania, sejam inteiramente inúteis. Não consegui, no entanto, descobrir a maldade que possa existir nas Linhas de Orientação para a Educação da Cidadania.
No âmbito da Educação intercultural, dada a crescente diversidade da sociedade portuguesa, veria com bons olhos não apenas a abordagem da liberdade religiosa, mas também uma apresentação do fenómeno do diálogo inter-religioso como contributo para a paz, a nível nacional e internacional. É desejável que a Educação para a Cidadania seja atribuída a pessoas competentes e disponíveis para o diálogo com toda a comunidade educativa.
O ser humano é sem definição. Transcende todas e cada uma das tentativas que dele procuram fazer um objecto de estudo. Diz-se que a sua verdade é filha do tempo, de sabedorias milenárias, da razão e da revelação, mas continua uma pergunta sem resposta: Donde vem? Para onde vai? Qual é o sentido da vida?
São igualmente repetidas as questões de I. Kant: Que posso saber? Que posso fazer? Que posso esperar? Que é o homem? Acrescentou: “No fundo, tudo isto pode ser posto à conta da antropologia uma vez que as três primeiras se referem à quarta.”
3. O ser humano continua sem definição. É um misterioso eu em face de um misterioso tu que grita, do fundo do seu abismo, por amor e misericórdia para si e para os outros. B. Pascal viu a originalidade do caminho cristão: “O conhecimento de Deus sem o da miséria humana engendra orgulho. O conhecimento desta miséria sem o de Deus engendra desespero. O reconhecimento de Jesus Cristo é o meio: nele conhecemos a Deus e a nossa miséria.” [2]
A proposta do Papa Francisco de mobilização de toda a Igreja para o Pacto Educativo Global não foi vencida pela covid-19. O seu lançamento – a procura de um humanismo solidário – está previsto para meados de Outubro.
Antes desta proposta, não se pode esquecer o seu discurso aos participantes na Plenária da Congregação para a Educação Católica, de que só podemos destacar algumas passagens:
“Recentemente, desenvolvestes o tema da educação para o diálogo intercultural na escola católica, com a publicação de um documento específico. Com efeito, as escolas e as Universidades católicas são frequentadas por numerosos estudantes não cristãos, ou até não crentes. Os institutos de educação católicos oferecem a todos uma proposta educacional que visa o desenvolvimento integral da pessoa e que corresponde ao direito de todos, de aceder ao saber e ao conhecimento. Mas são igualmente chamadas a oferecer a todos — no pleno respeito pela liberdade de cada um e dos métodos próprios do ambiente escolar — a proposta cristã, ou seja, Jesus Cristo como sentido da vida, do cosmos e da história.
Jesus começou a anunciar a boa nova na ‘Galileia das nações’, encruzilhada de populações diferentes por raça, cultura e religião. Sob alguns pontos de vista, este contexto parece-se com o mundo contemporâneo. As profundas transformações que levaram à propagação cada vez mais vasta de sociedades multiculturais exigem de quantos trabalham nos campos escolar e universitário o compromisso em itinerários educativos de confronto e de diálogo, com uma fidelidade intrépida e inovadora, que saiba levar a identidade católica ao encontro das diversas “almas” da sociedade multicultural. Penso com apreço na contribuição oferecida pelos Institutos religiosos e pelas demais instituições eclesiais com a fundação e a gestão de escolas católicas em contextos de acentuado pluralismo cultural e religioso.
(…) É necessário que as instituições académicas católicas não se isolem do mundo, mas saibam entrar intrepidamente no areópago das culturas contemporâneas e estabelecer um diálogo, conscientes do dom que podem oferecer a todos.” [3]
Como se verá no desenvolvimento do Pacto Educativo Global, a situação da Escola Católica é extremamente diversa nos diferentes países. A marca cristã de todas as Escolas Católicas deve ser esta: fazer do privilégio de acesso à cultura, média e superior, a missão de não deixar ninguém para trás. Sem esta marca cristã, a Escola Católica contribuirá para perpetuar a injustiça social em todas as suas manifestações.
Frei Bento Domingues no Público
[1] Cf. Francisco George e Constantino Sakellarides, PÚBLICO, 09.09.2020
[2] Pensées (Ed. Chevalier), Paris 1938, n. 75
[3] Discurso de 13 Fevereiro de 2014