1. Também se aplica à Igreja, e compreende-se que de modo particular à Igreja, tantas são as expectativas em relação a ela: dá-se eco, sobretudo nos média, ao que é negativo, aos erros, crimes, escândalos... Quem pode negar tudo isso? Mas o que a Igreja fez e faz de positivo é mais: promoção das pessoas, combates pela sua dignificação, infindáveis iniciativas de caridade e cultura... Também agora, nesta calamidade pandémica. Quantos políticos portugueses, se quiserem ser honestos, terão de estar de acordo com as palavras do alcaide de Madrid, José Luis Martínez Almeida: “A acção da Igreja foi fundamental, como o é na vida quotidiana.”
Neste contexto, perdoe-se esta nota: quando a ecologia tem de ser um elemento essencial na viragem, o Vaticano dá o exemplo: instalou no edifício da Aula Paulo VI painéis solares, promove o uso de veículos eléctricos, eliminou o uso de pesticidas tóxicos nos jardins...
Mas a dívida maior para com a Igreja, apesar da e no meio da sua história de miséria, é que através dela o Evangelho foi sendo anunciado, e o Evangelho está na base da tomada de consciência da dignidade inviolável da pessoa e foi fermento que levou à proclamação dos Direitos Humanos.
2. A ameaça maior da Igreja é o poder e os conluios com os poderes. Uma demonstração simples deste perigo está em que, desgraçadamente, quando se fala da Igreja, no que se pensa é no Papa, nos cardeais, nos bispos, nos padres, nos monsenhores..., tudo aquilo em que nem Jesus nem os primeiros discípulos pensariam.
O núcleo do cristianismo é a mensagem de Jesus, o Evangelho: Deus é Pai-Mãe de todos e quer a alegria e a salvação de todos. A Igreja mundial é a comunidade de comunidades cristãs espalhadas pelo mundo e congregadas por essa mensagem, na fé, na esperança e praticando o amor, a justiça, a paz. Evidentemente, é necessário um mínimo de organização, mas a pergunta é: essa organização tem de ser piramidal, hierárquica, machista, gerontocrática, centralizadora?
Francisco sabe que este é um combate decisivo para o futuro da Igreja. Ele é cristão, franciscano, mas é também jesuíta, não é anarquista, e sabe que alguma organização se impõe. Daí, o seu combate permanente, sem tréguas, contra o clericalismo, o carreirismo, a corte, que são “a peste da Igreja”, e o esforço para que se perceba que o poder só vale enquanto serviço, e a sua abertura a uma Igreja verdadeiramente sinodal, isto é, uma Igreja na qual todos caminham juntos, uns com os outros e todos com Jesus, ao serviço da Humanidade. O que ele peleja para que acabem os bispos-príncipes e para renovar a Cúria e o Banco do Vaticano! Sem desânimo, apesar de saber que, como disse num dos discursos à Cúria, “é mais difícil reformar a Cúria do que limpar a esfinge do Egipto com uma escova de dentes.”
3. Na “nova normalidade”, a Igreja necessita, em primeiro lugar, de que todos os seus membros renovem o essencial: a fé. Neste sentido, significativamente, apareceu agora uma nova versão do “Directório para a catequese”, e a mensagem essencial é que o centro não está nas doutrinas, mas na pessoa de Jesus, e, por isso, o decisivo é que “cada pessoa descubra que vale a pena acreditar” e conheça o amor cristão. Isso impõe, certamente, estar atento também à utilização das novas tecnologias e ser uma presença evangelizadora no continente digital.
A linguagem tem de adaptar-se. Por exemplo, não se pode continuar a falar do pecado original, como se fazia, e é preciso perguntar: que significa hoje “ressurreição da carne”, “desceu aos infernos”, “gerado, não criado, consubstancial ao Pai”? Não se pode ficar imóvel nos rituais, com gestos e sinais que já nada significam, o que implica que urge a adaptação da liturgia e de toda a linguagem da fé às diferentes culturas, com o que se chama Inculturação do Evangelho. E a simplicidade tem de ser lei: pense-se, por exemplo, naquele ritual do tira e põe do solidéu, o mesmo acontecendo com a mitra. Sobre esta, falou Santo António, num sermão do Advento (devo a citação a Sofia Nunes): “Cairão os unicórnios, os imperadores e reis deste mundo e os touros, os bispos mitrados, que têm na cabeça dois cornos como se fossem touros.”
A Igreja tem de continuar a fomentar o ecumenismo — felizmente, o Vaticano põe a questão de revogar a excomunhão a Lutero — e o diálogo inter-religioso.
Com que fundamentos justificar a imposição do celibato obrigatório ou a discriminação das mulheres? E não precisam de revisão os ministérios na Igreja?
Sobre a Igreja sinodal, que é o tema do próximo Sínodo em Outubro de 2022, o sociólogo J. Elzo tem uma figuração apelativa: “Uma Igreja em rede, à maneira de um gigantesco arquipélago que cubra a face da Terra, com diferentes nós em diferentes partes do mundo, inter-relacionados e todos religados a um nó central, que não centralizador, que, na actualidade, está no Vaticano. Aí ou noutras partes do planeta, todos os anos se reuniria uma representação universal de bispos, padres, religiosas e religiosos, leigos (homens e mulheres), sob a presidência do Papa, para debater a situação da Igreja no mundo e adoptar as decisões pertinentes”, também no que se refere aos problemas da Humanidade.
P. S. Como anunciou o Presidente turco, R. Erdogan, Santa Sofia, em Istambul, passa a mesquita. O Papa Francisco comentou: “O meu pensamento dirige-se para Istambul. Penso em Santa Sofia e sinto muita dor”. Ao acontecimento e à sua problemática dedicarei a próxima crónica.
Anselmo Borges