sábado, 4 de julho de 2020

Desconfinar a Igreja. 2

Crónica de Anselmo Borges 


Igreja de saída

1. Quem está interessado na Igreja, seja por razões de fé, religiosas, ou simplesmente históricas, é com certeza assaltado pela pergunta: o que se passa? De facto, os dados estão aí, clamorosos. Concretamente na Europa e em países como a França, a Espanha, os Países Baixos, a própria Irlanda, para não falar na República Checa, onde 80% dos habitantes se confessam ateus, a prática religiosa cai vertiginosamente, sobretudo entre os jovens, sendo dramática de ano para ano a diminuição do número de baptismos, de casamentos..., os seminários esvaziam-se, o clero envelhece... 
O que se passa? Há razões exteriores à Igreja e outras de que ela própria é responsável. Vivemos numa sociedade que vive da imediatidade e do prazer, num consumismo devorador, que afastou do seu horizonte as perguntas essenciais, metafísico-religiosas, menosprezando a questão do sentido, do sentido último, esperando fundamentalmente respostas da tecnociência e das novas tecnologias. Mergulhados no mundo da imanência, a transcendência desaparece. 
Mas as responsabilidades da própria Igreja não podem ser ignoradas. Como é patente a quem não queira fugir à verdade e à lucidez. A fé viva começa sempre com uma experiência de encontro. Jesus fez uma experiência avassaladora de Deus como Pai-Mãe, amor incondicional. A partir dela, anunciou o Reino de Deus, que é o reino da fraternidade, da alegria, da esperança, da liberdade, o reino das bem-aventuranças. Os camponeses pobres, todos os explorados, as mulheres oprimidas, os que lutavam pela vida contra a fome, a opressão, a doença, os pecadores públicos, os perdidos, escutaram a sua proclamação de libertação salvadora. Porque, lá no mais fundo, os seres humanos vivem da experiência negativa de contraste: há o que não pode ser, porque anula a vida, e o que deve ser, para que a vida ganhe sentido. Jesus anunciava o que deve ser: quem acreditava nele encontrava a salvação. Evidentemente, essa mensagem incomodou muitos que viviam de oprimir os outros, a começar pelos sacerdotes do Templo, que exploravam em nome da religião. Ameaçados pelo perigo que o Deus salvador de Jesus constituía, condenaram-no à morte, fazendo coligação com os interesses imperiais de Roma. E Jesus foi crucificado. 
Aparentemente, era o fim. O enigma histórico do cristianismo é precisamente este: o que é que aconteceu para que os discípulos, que, desiludidos, se tinham dispersado, voltando aos seus ofícios, se reunissem outra vez e fossem anunciar, expondo a própria vida, pois morreram por isso? Reflectindo sobre tudo o que tinha acontecido, sobre a vida de Jesus e também a sua morte, o que o movia, o modo como se relacionava com Deus..., foram fazendo a experiência avassaladora de fé, de que aquele Jesus, o crucificado, está vivo em Deus para sempre, como esperança e promessa para todos: Deus não o deixou abandonado à morte. Ele é o Vivente. 
Também Paulo fez essa mesma experiência e, de perseguidor, tornou-se Apóstolo. Fez milhares e milhares de quilómetros (vinte mil?), para levar o Evangelho a todos. E trabalhava para não ficar pesado a ninguém e para não pensarem que vivia disso. Foi perseguido e morto. Mas a sua experiência marcou a História. O que vale um morto crucificado? Nada. Pelo contrário, pertence à lixeira do mundo. Então, se Deus não abandonou Jesus à morte, mas o ressuscitou, é porque está com ele e com a sua causa, a causa dos seres humanos, é ele que tem razão. Se Deus está com ele, o crucificado, ele vale e, se ele vale, todos valem. Por isso, “Já não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher, todos são um só em Cristo.” Já ninguém se lembra de que é aqui que fermenta a dignidade da pessoa humana e os direitos humanos? Esta foi a mensagem mais libertadora da História, para esta vida e para a eternidade. Agora, a existência ergue-se com sentido final, nesta proclamação de Jesus, como sublinhou o filósofo Ernst Bloch: “Eu sou a Ressurreição e a Vida”. E: “Sois todos irmãos”. Pela primeira vez na História, quando um senhor se convertia, participava na Eucaristia, sentando-se na mesma mesa que o seu escravo. Para Deus, todos têm valor, valor infinito, de filhos e filhas. 
Esta é a Igreja dos começos, quando os cristãos o eram verdadeiramente, a partir desta experiência. Comunidades cristãs fraternas. 
Depois, lentamente, foi o que se sabe. A Igreja tornou-se uma instituição de poder, cada vez mais poderosa e centralizada, imperial. Lá está o famoso Dictatus Papae, de Gregório VII: “Só o Romano Pontífice é digno de usar insígnias imperiais”. Daí, seguiu-se a corte, o fausto, vestimentas de luxo, títulos e dignidades: Eminência, Excelência Reverendíssima, Monsenhor... Nas celebrações da Eucaristia, com os chamados pontificais, ninguém minimamente atento poderia já reconhecer a memória da Última Ceia. Numa Igreja que discrimina as mulheres, não é possível reconhecer Jesus, que as incluiu em igualdade e ternura. E não é Jesus que está na base de uma Igreja com duas classes: o clero que manda e os leigos que apenas obedecem. 

2. O Papa Francisco vem chamando a atenção para o “desafio” de “compreender o que Deus nos está a dizer nesta pandemia”. “Porque pior do que esta crise é o drama de desaproveitá-la, enclausurando-nos dentro de nós próprios.” Urge a abertura a “uma Igreja em saída”, desconfinada de dogmas estéreis, clericalismos, tradições fossilizadas, ritualismos mortos, que não transmitem vida. Para isso, só há um caminho: cada cristão voltar a fazer uma experiência pessoal de encontro com Cristo e o seu Evangelho. Continua.

Anselmo Borges 

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