domingo, 12 de julho de 2020

A luta das mulheres e as reformas na Igreja

Crónica de Bento Domingues 


1. Depois de muitas controvérsias, o Caminho Sinodal da Igreja católica alemã arrancou no começo deste ano, mais precisamente, a 30 de Janeiro. Em Portugal, o 7Margens tem ajudado a seguir o que vai acontecendo nessa importante caminhada. 
Um relatório divulgado a 26 de Junho 2020, pela Conferência Episcopal Alemã, revela que, em 2019, cerca de 270 mil alemães abandonaram a Igreja Católica, 26% superior ao do ano anterior. Recebido pelo Papa Francisco, o representante dos bispos do país, Georg Bätzing, não escondeu a sua preocupação. Em audiência privada, o bispo de Limburgo falou ao Papa do caminho sinodal na Alemanha e encorajou a continuação do processo de reforma. 
Segundo o citado relatório, entre os factores que mais influenciaram o abandono do catolicismo incluem-se a não identificação com os ensinamentos da Igreja a respeito das questões de moral sexual, a recusa do acesso das mulheres à ordenação sacerdotal e o celibato obrigatório dos padres. 
Retenho sobretudo as informações sobre a situação eclesial das mulheres, considerada a parte mais numerosa e mais fiel à Igreja. 
Chegam-nos, cada vez mais, notícias acerca do que está a acontecer na Alemanha, em França, em Inglaterra, nos EUA e não só. Importa não esquecer que o mal-estar é muito mais vasto do que aquele que é expresso por algumas figuras feministas e pelos grupos mais ruidosos de alguns países. 
É gritante o contraste entre as responsabilidades que as mulheres vão assumindo na vida profissional, social, cultural, económica e política e a menoridade em que são mantidas a respeito dos serviços que estruturam as comunidades católicas. Porquê? Porque não são homens. É a resposta. 

2. Não se pode continuar a manter as mulheres numa situação de marginalidade sobre os ministérios estruturantes da vida da Igreja, se queremos enfrentar, de verdade, os nossos desafios actuais. No entanto, bastava seguir a linha de originalidade e de atrevimento que Jesus Cristo assumiu, em relação ao estatuto da mulher, na cultura do seu tempo. 
Como é possível que, em nome de certas tradições eclesiásticas, se despreze a grande Tradição confiada por Jesus Cristo Ressuscitado às mulheres, a de evangelizar os próprios Apóstolos? Estes dispersaram quando viram o Mestre crucificado, ruína irremediável das suas esperanças de poder. 
A pergunta de fundo é esta: as mulheres são ou não são membros da Igreja ao mesmo título que os homens? 
Como é possível esquecer que, na genuína tradição da Igreja, nunca houve um baptismo para homens e outro para mulheres? Na porta sacramental que o baptismo abre, em lado nenhum vem escrito que os homens são para a liderança e as mulheres para a submissão ao arbítrio masculino. 
Haverá sempre uma grande diversidade de carismas, tanto no mundo masculino como no feminino e a necessidade de ministérios servidos por homens e mulheres. O baptismo não diferencia as responsabilidades da fé cristã dos homens e das mulheres. Em tudo o que viverem e fizerem devem ser parceiros. 
O cardeal Gianfranco Ravasi, na leitura que faz do livro Que coisa é o homem? Um itinerário de antropologia bíblica [1], tem, a este respeito, uma observação muito sugestiva. Ao falar da frequência e do modo como as mentes de muitos são distorcidas por cristalizações ideológicas, dá o exemplo bíblico da célebre “costela” de Adão, da qual teria sido tirado o protótipo da mulher. 
Na realidade, o correspondente vocábulo hebraico, “sela”, na Bíblia, “nunca designa uma parte específica do corpo, mas simplesmente um ‘lado’ ou flanco de qualquer objecto. Se então se evita a referência a um órgão anatómico, poder-se-ia fazer emergir a ideia de que ‘homem e mulher’ estão como ‘lado a lado’, semelhantes na natureza constitutiva; e, ao mesmo tempo, eles são chamados a estar ‘lado a lado’, um ao lado do outro, como ajuda e aliados”. 
Desmoronam-se, assim, todos os sarcasmos que foram tecidos sobre este excerto, com as relativas aplicações, infeliz e eficazmente concretas, em relação à dependência da mulher em relação ao homem contrabandeando-as como sacramente avalizadas.” [2] 

3. A situação só pode parecer desesperada para quem deixar de lutar pela mudança. Dou um exemplo. O famoso teólogo dominicano, Yves Congar, foi exilado três vezes para ver se o obrigavam a desistir de estudar, ensinar, escrever e publicar sobre as questões que exigiam reformas inadiáveis na Igreja católica. Sentiu que o queriam destruir. Conseguiu, no meio de muitos sofrimentos e tentações, aguentar. Pela mão de João XXIII, foi perito do Concílio Vaticano II. Os documentos finais desta magna Assembleia têm todos frutos do seu trabalho [3]. 
Um desses pontos era o da situação dos leigos na Igreja. No esquema Supremi pastoris, preparado para o Vaticano I (1870), vem uma afirmação que diz o que hoje nos parece ridículo: “Ninguém pode ignorar que a Igreja é uma sociedade desigual, na qual Deus destinou uns a comandar, os outros a obedecer. Estes são os leigos, os outros são os clérigos.” Esta definição foi, depois, endurecida pelo direito canónico como indica a formulação, puramente negativa, de Pio XI: “Os leigos são os cristãos a quem falta qualquer participação no poder quer de jurisdição, quer da ordem.” 
Em 1975, Y. Congar mostra o que mudou: “Um traço característico da renovação na Igreja é o papel activo que nela assumem os leigos, conscientes da dignidade e responsabilidade que lhes confere a consagração baptismal, em comunhão com os bispos, os padres e os religiosos e não por subordinação a eles. Sabem que as suas tarefas podem ter um valor eterno no desígnio de Deus que confia ao ser humano o uso e o desenvolvimento da criação. Trabalham na transformação da sociedade humana para a tornar mais justa e fraterna.” [4] 
Dada a lentidão de reformas, cuja urgência parece evidente, compreende-se que alguns movimentos e pessoas acabem por desesperar e batam com a porta ou abandonem a “casa” sem se despedir. No entanto, quem conseguir aguentar o peso de não ver nenhuma luz ao fundo do túnel pertence ao número dos que esperam contra toda a esperança. São essas mulheres e homens que, muitas vezes, morrem antes de verem os frutos da sua luta que, paradoxalmente, vão permitir as reformas das instituições, desesperadamente lentas. 
Ao dizer isto, não quero justificar os responsáveis pelas lentidões. É a própria história da Igreja que os condena.

Frei Bento Domingues

[1] Card. Gianfranco Ravasi, Leitura do livro, Che cosa è l’Uomo? Un itinerário di antropologia bíblica, da Pontifícia Comissão Bíblica, publicada pela Pastoral da Cultura a 25.06.2020
[2] Cf. Génesis 2, 21-22
[3] Cf. André Vauchez, Yves Congar et la place des Laïcs dans l’Ecclésiologie médiévale, in Cardinal Yves Congar 1904-1995, Cerf, 1999, pp.165-182
[4] Cf. nota 3

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue