Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
1. Jean Druel é um dominicano francês, especialista da patrística copta, da língua árabe, da gramática árabe medieval e director do conceituado IDEO – Instituto Dominicano de Estudos Orientais do Cairo (Egipto), onde vive. Com esta apresentação, podia dar a ideia de uma pessoa confinada na investigação científica, a escrever só para especialistas. Mas não. Tornou-se um conferencista muito escutado e passou a escrever livros breves, de vários géneros, para mostrar que a vida diária, carnal, intelectual, sexual, afectiva, social, cultural, desportiva, literária, musical é o verdadeiro e concreto espaço de Deus connosco. É no Seu insondável mistério que vivemos, nos movemos e existimos.
Nessa nova biblioteca, publicou uma deliciosa introdução aos princípios do diálogo inter-religioso, fruto da sua longa experiência de diálogo com o mundo muçulmano. Recomendo-o vivamente. A escuta paciente das raízes das diferenças é a boa regra para viver no seio dos conflitos que habitam todos os aspectos da vida, a começar pela vida familiar [1].
Para este investigador, um dos aspectos do drama da nossa época resultou da ingenuidade de se ter acreditado que, fazendo calar as religiões e os crentes, se ia conseguir viver num mundo de paz. Pensou-se também que o estudo histórico dos dogmas e das práticas religiosas neutralizaria o potencial de violência que se abriga nas religiões. Aconteceu precisamente o contrário. Precisamos, como nunca, de dialogar, de nos sentirmos confrontados com as nossas próprias crenças e narrativas. De escutar os nossos próprios mundos interiores provocados no confronto com os outros. Também eles habitados por mundos que talvez desconheçam. O objectivo do diálogo não é o de procurar estar de acordo, mas de tentar descobrir as raízes das diferenças. Vamos, assim, tornando-nos adultos na fé, livres e felizes de sermos diferentes.
Se forem respeitadas algumas regras simples, como a de tomar a sério o interlocutor, de o escutar até ao fim, sem se enervar, de dizer verdadeiramente o que se pensa, podem ser ultrapassados os medos recíprocos e viver melhor uns com os outros, sem estar de acordo.
Se este livro ajudar os leitores a encontrar esse caminho, o autor pensa que ganhou a sua aposta.
2. O apelo ao diálogo inter-religioso é fundamental, mas no pressuposto de se tratar, verdadeiramente, de religião e quando os interlocutores consentem nesse caminho. Perante uma situação de violência activa, a própria realidade afirma, muitas vezes, a falta de margem para se entrar em diálogo. A linguagem é a das armas. Terão de ser encontrados outros caminhos. Por outro lado, a persistente acusação das religiões, como fontes de violência, precisa de ser mais ponderada.
É uma acusação que não se refere apenas a guerras antigas e às Cruzadas medievais. No século XVI, no início da Modernidade, os conflitos entre católicos e protestantes estão na origem de uma nova visão do direito público europeu. Os Estados nacionais, em plena expansão, usaram o pretexto religioso para alcançar ambições muito pouco religiosas. Durante muito tempo, os Estados soberanos europeus desenvolveram uma política destinada a estabelecer, de facto, uma Igreja nacional sujeita à sua autoridade. Mas aqui é preciso distinguir: a invocação da religião, em determinadas situações, é um poderoso factor de mobilização identitária, mas quem pode negar que muitos conflitos apresentados como religiosos, tanto no passado como no presente, têm na realidade motivações e ambições inteiramente terrenas?
A acusação da religião como factor de violência redobrou-se com o ataque de 11 de Setembro de 2001, em Nova Iorque, em Madrid, em Londres, em Paris, em Nice, sem falar da série de atentados e massacres na Síria, no Paquistão, na Nigéria, no Sri Lanka, no Iraque, no Iémen, na Líbia, etc. O terrorismo macabro do DEDI (Dito Estado Dito Islâmico), no nordeste de Moçambique, vem agora documentado no importante livro de Nuno Rogeiro, O Cabo do Medo [2].
3. Perante os desafios da fome, da injustiça, da guerra e da paz do nosso tempo, os católicos e os muçulmanos só podem dizer que não sabem o que fazer em conjunto, se continuarem a ser cegos.
A 4 de Fevereiro de 2019, o Papa Francisco e o Grão Imame de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, assinaram, em Abu Dhabi, a Declaração Fraternidade Humana em prol da paz e da convivência comum. Que esta Declaração tenha sido possível constitui o acontecimento mais significativo, de que há memória, entre o representante mais reconhecido da comunhão da Igreja católica e a figura amplamente considerada como a autoridade máxima no mundo muçulmano sunita. Distinguem, rigorosamente, o que pode e deve ser atribuído à religião e o que é o seu uso perverso:
“De igual modo declaramos – firmemente – que as religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue. Estas calamidades são fruto de desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e também das interpretações de grupos de homens de religião que abusaram – nalgumas fases da história – da influência do sentimento religioso sobre os corações dos homens para os levar à realização daquilo que não tem nada a ver com a verdade da religião, para alcançar fins políticos e económicos mundanos e míopes. Por isso, pedimos a todos que cessem de instrumentalizar as religiões para incitar ao ódio, à violência, ao extremismo e ao fanatismo cego e deixem de usar o nome de Deus para justificar actos de homicídio, de exílio, de terrorismo e de opressão. Pedimo-lo pela nossa fé comum em Deus, que não criou os homens para ser assassinados ou lutar uns com os outros, nem para ser torturados ou humilhados na sua vida e na sua existência. Com efeito Deus, o Todo-Poderoso, não precisa de ser defendido por ninguém e não quer que o Seu nome seja usado para aterrorizar as pessoas.”
O documento é longo e abrange as questões centrais do mundo dos nossos dias. Precisa de ser conhecido e estudado: “Al-Azhar e a Igreja Católica pedem que este Documento se torne objecto de pesquisa e reflexão em todas as escolas, nas universidades e nos institutos de educação e formação, a fim de contribuir para criar novas gerações que levem o bem e a paz e defendam, por todo o lado, o direito dos oprimidos e dos marginalizados.”
Já é tempo de perguntar: o que está a ser feito, entre nós, desta recomendação, tanto no campo católico como muçulmano?
Frei Bento Domingues
[1] Je crois en Dieu! – Moi non plus, Cerf, 2O17
[2] Cf. Nuno Rogeiro, O Cabo do Medo. O Daesh em Moçambique. 2019-2020, D. Quixote, 2020