Crónica de Anselmo Borges
Chegam-me vozes a cantar esperança no novo presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), José Ornelas, bispo de Setúbal. Eu próprio disse a Natália Faria, do Público, quando imediatamente a seguir à eleição me perguntou se a sua escolha constituía garantia de rejuvenescimento: “Neste momento em que, no meu entender, a Conferência Episcopal precisa de um novo impulso, ele será capaz de assegurar o rejuvenescimento necessário. Trata-se de uma figura destacada do ponto de vista intelectual, e, por outro lado, dedicado aos outros e à sociedade. E tem uma gigantesca experiência internacional.” Tendo vivido em Roma como superior-geral dos padres dehonianos, presentes em 38 países, conhece o que se passa também no Vaticano e, sobretudo, vive o espírito do Papa Francisco. Anima-o o desprendimento pessoal e uma “Igreja em saída”, em desconfinamento, no sentido do abandono de estruturas de poder medieval, como insiste Francisco.
Quando se lê a sua primeira longa entrevista, ao jornal Público, as esperanças não são defraudadas. Pelo contrário. As suas declarações têm duas vertentes: uma ad intra, para dentro da própria Igreja; a outra ad extra, para fora, para a sociedade em geral, como voz político-moral.
Não tem dúvidas de que na Igreja é preciso “trabalhar melhor e em rede”, bem como passar de uma Igreja piramidal, hierarquizada, para uma Igreja comunional, circular. “Não tem dúvidas“ de que se impõe acabar com “os velhos clericalismos”.
A Igreja deve ser fiel à tradição, mas “isso não pode significar paralisia. Num mundo que evolui rápida e radicalmente, a Igreja tem de encontrar novos modos de se dirigir a este mundo e à sua realidade complexa e fecunda.” A Igreja vive num mundo diferente daquele a que estava habituada: vivemos num mundo plural, também do ponto de vista religioso; “a ideia de uma Igreja onde tudo estava formatado do mesmo jeito e com a mesma fé já não existe.” A Igreja já não ocupa o centro, “temos de ser uma Igreja que vai ao encontro das pessoas”, e o presidente da CEP reconhece que há hoje “uma receptividade nova e uma sede de sentido para a vida que grassa entre os jovens e é aí que penso que nos podemos encontrar.” A Igreja não pode ficar simplesmente à espera, tem de se pôr a caminho, “fazer-se próxima.”
Neste contexto, compreende-se a exigência de levar adiante o trabalho das comissões nas dioceses para acabar com a tragédia do abuso sexual de menores, admitindo mesmo que possa aumentar o número de denúncias. Como se entende que não tenha receio em declarar que “não veria mal a possibilidade de termos padres casados na nossa Igreja” e que não rejeite o debate à volta da possibilidade, mesmo que mais complicada, da ordenação de mulheres: “não a tiro de cima da mesa”.
Aqui chegados, penso que não será exagerado pensar que o Bispo José Ornelas espera um clero com outra formação, também do ponto de vista intelectual, para este mundo novo que está aí. As homilias dos padres em geral falam de quê, para quem? Qual a responsabilidade da Faculdade de Teologia? Que futuro para os Seminários?
Ad extra. O país e o Estado podem esperar uma atitude leal, colaborante, mas que não exclui a crítica.
Na presente situação de calamidade económica e social, o Estado não pode fugir às suas responsabilidades de garantir o mínimo a que os cidadãos têm direito. Não se quer voltar à ideia de “uma economia planificada e estatizada”, portanto, o Estado “não tem de fazer tudo. Pelo contrário, se o Estado quiser fazer tudo, vai sair caro a todos e, além disso e o que é pior, não conta com a criatividade e a iniciativa da sociedade.” Mas tem de dar às instituições “capacidade de sobreviver e de actuar. E, neste momento, há muitas instituições que estão em perigo de entrar em colapso.” Refere nomeadamente as IPSS, muitas das quais são geridas por entidades ligadas à Igreja e que “estão no limite da sustentabilidade”, “o que se recebe do Estado e das famílias fica aquém do custo, e não queremos prestar um serviço de segunda classe”, para não se cavar mais fundo o abismo entre quem tem e quem não tem.
Ergue-se contra a discriminação e o racismo e exclusão, prevenindo: “O que queremos é uma sociedade justa e digna e que não precisa de enveredar por caminhos de violência para se reconstruir.”
Na presente situação pandémica, é claro que se impõe salvar vidas e a saúde, sendo, pois, necessário tomar as medidas adequadas para controlar a pandemia. Mas não deixa de prevenir contra os perigos da deriva para “totalitarismos”: “se isso é feito no sentido de manipular pessoas, deixa de ter sentido.”
Pensando na crise já presente e que se vai agravar, económica e social, avisa para a urgência da solidariedade global, a começar pela União Europeia, e profetiza: “Ou há um rejuvenescimento do projecto europeu ou este caminhará para o seu fim.”
A eutanásia não podia ser esquecida. “Não gostaria que a vida fosse referendável, mas se for essa a última praia... Mas sinto-me desconfortável com a ideia de apresentar a alguém um cardápio com as possibilidades de acabar com a vida.” Evidentemente, é contra a eutanásia — eu acrescento que a ideia de referendo recolheu mais de 95.000 assinaturas. Mas o que se impõe discutir é “qual o modelo de sociedade que queremos e como é que nessa sociedade se garantem valores de humanização para que as pessoas consigam terminar a sua vida de forma pacífica, sentindo-a a completar-se e não simplesmente abandonadas.”
Anselmo Borges