Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
Claro que precisamos da devida “distância social” e do confinamento apropriado e, evidentemente, também e sobretudo, da máscara. Para preservarmos a saúde, a nossa e a dos outros. Podemos contagiar-nos uns aos outros e somos responsáveis uns pelos outros. Quem é cristão tem uma razão suplementar para isso: segundo os Evangelhos, um dos interesses e preocupações maiores de Jesus foi a saúde das pessoas. Por isso, não entendo aquele debate à volta da comunhão na mão ou na boca, havendo quem invoque razões para a comunhão na boca. Sempre fui contra a comunhão na boca, pois só damos de comer na boca às crianças. Agora, ainda mais se impõe a comunhão na mão, por causa da preservação da saúde. Ah!, e para quem continua a propugnar a comunhão na boca: não é verdade que provavelmente há línguas mais sujas do que as mãos?
Mas não foi este tema que me motivou hoje. A questão é mais funda. O que provoca a minha reflexão de hoje são outros confinamentos e outras máscaras, ficando a crónica de hoje para os desconfinamentos e a da próxima semana para os desmascaramentos. Desconfinados e desmascarados.
1. Como a gente se sente mal no confinamento! Mas, ao contrário do que pensamos, andamos e somos demasiado confinados, no sentido de auto-centrados, e, por isso, pobres, se não paupérrimos. Afinal, na contradição de nós. Vejamos.
Uma vez, uma antiga aluna pediu-me para ir à escola onde agora lecciona, para fazer uma palestra sobre o umbigo, esperando ela que fosse falar sobre o egoísmo, o individualismo. Cheguei lá e fui mostrando aos jovens que é verdade que essa expressão de “voltado, voltada para o seu umbigo” é vulgarmente usada com esse sentido. Mas em contradição com o próprio umbigo. De facto, o umbigo é em nós a marca biológica de que não vimos de nós, vimos de uma relação, não somos a nossa origem.
Outra vez, uma outra estudante queria uma nota melhor. Para isso, até escreveu um trabalho sobre ética. Na defesa, perguntei-lhe: “Se houvesse uma única pessoa no mundo, como seria um tratado de ética?”. E ela: “Nem sequer se punha a questão ética, porque essa ‘pessoa’ não sabia que era ser humano.” E teve a boa nota que queria.
É isso: somos seres humanos com e entre seres humanos, fazemo-nos uns aos outros e uns com os outros. Quem não ouviu falar no menino-lobo, que viveu sempre com lobos e que se comportava como lobo, que não sabia falar? É isso: depois do nascimento, precisamos de um “segundo útero”, até, pelo menos, adquirirmos a posse da palavra, tornando-nos então verdadeiramente humanos. Talvez percebamos agora melhor, no meio do confinamento, a falta que fazem as creches para a socialização e crescer saudavelmente, e as escolas, não só para aprender as matérias de ensino, mas aprender, na presença física e na interacção, essa que é a nossa tarefa primeira: irmos sendo homens e mulheres, adultos, autênticos, livres. E o que se pôde observar com as pessoas de idade, confinadas, sem visitas, como se estivessem encerradas em autênticos “jazigos vivos”? Quem se fecha sobre si morre, melhor, já está morto. Porque a vida é comunicação, comunicação de todo o tipo: pelo olhar, pelo toque, pelo afecto, pela palavra, pelos silêncios, pela ressonância...
Sem tu, não há eu, constituindo um nós. A identidade pessoal é sempre atravessada pela alteridade. O outro, os outros, fazem parte da minha identidade: que seria eu sem eles? E, quando falo dos outros, estou a falar dos que conheço e de todos os que não conheci nem é possível conhecer: aí estão, do ponto de vista biológico, os bisavós, os trisavós, os tetravós... — até onde? e com todos os cruzamentos pelo caminho... Mas estão igualmente presentes todos aqueles e aquelas que me influenciaram, que eu, por exemplo, li..., e aí estão romances, obras de literatura, de filosofia, de teologia..., que fazem parte de mim, que sou eu, sem dar por isso. Somos sempre o resultado de uma herança genética e de histórias e encontros (e desencontros) culturais... De tal modo é assim que muitas vezes me pergunto: se tivesse encontrado outras pessoas, se tivesse frequentado outras escolas e universidades, se não tivesse tido as oportunidades que tive e algumas ousadias na descoberta do mundo..., seria eu? Sim eu, mas de outro modo. Como? Tantas possibilidades em aberto...
O paradoxo é este: é na abertura a tudo, ao Infinito, que o ser humano toma consciência de si como único, na intimidade mais íntima. Nisto, nos distinguimos dos outros seres, ascendendo. Uma pedra, por exemplo, tem relação com o que a rodeia, mas numa ligação pétrea, exterior. A árvore já lança raízes e a sua relação com o que a rodeia já é viva, a árvore tem a vida chamada vegetativa. Um cão rafeiro passeia-se por muitos lados e, portanto, o nexo de ligações é muito mais amplo, já tendo consciência de si, não consciência de que é consciente, evidentemente, mas alguma consciência, que o faz distinguir-se dos outros. O ser humano, esse, está em relação com tudo: com o que está perto e com o que está longe, com o real, mas também com o imaginário, com o possível e o impossível, com o que há e com o que não há, com o hipotético, está em ligação com todos o seres, com o Ser, com os mais próximos, com todos os que o precederam, na história do universo, e, recuando, atravessa o quando não havia vida e depois se passou ao vivo, e depois, na evolução constante, se avançou para o erectus e para o sapiens e o sapiens sapiens e vai até ao Big Bang e, aí chegado, ainda pergunta porque é que há algo e não nada, pergunta pelo Fundamento último e pelo Sentido último de tudo. É nesta abertura que, paradoxalmente, o ser humano vem a si, reflectindo sobre si mesmo como um eu único, consciente de que é consciente, numa unicidade indizível, até para si próprio. Cada um e cada uma podem e devem dizer a si mesmos, para bem e para mal: “Nunca houve nem haverá na História alguém como eu.” Este é o enigma e o mistério do ser humano, de tal modo que somos uma questão imensa, irresolúvel, para nós próprios, já que não é possível conhecermo-nos completamente a nós mesmos, porque não conseguimos objectivar-nos totalmente. Somos uma subjectividade que não é completamente acessível a si própria: não podemos ir à janela ver-nos a passar na rua... Quer dizer, por mais que objectivemos de nós, para nos conhecermos, nunca nos objectivamos plenamente, pois somos uma subjectividade que se retrai a uma total objectivação.
Não há dúvida. Somos constitutivamente relação. Não somos primeiro nós, que, num segundo momento, entramos em relação. Somos sempre em relação, de tal modo que ser e ser em relação se identificam. Relação com os outros, relação com a natureza, relação com a Transcendência, com Deus. É assim que, em tensão, vimos a nós como centros pessoais, cada um, cada uma em autoposse e liberdade, liberdades que se reconhecem mutuamente com igual dignidade.
P. S. Quando se trava um combate por vezes heróico contra a pandemia, querer voltar ao Parlamento com a eutanásia é, no mínimo, uma falta de pudor.
Anselmo Borges