no PÚBLICO
"O recurso à diferença histórica não pode significar
o culto da indiferença perante a violência, seja de que época for."
1. Os incitamentos à violência em nome de Deus, no chamado Antigo Testamento (AT), espantam-nos por boas e ambíguas razões. Por boas razões, porque a voz que pode ser escutada, em todos os tempos e lugares, no íntimo da consciência humana, consciência ética, não desresponsabiliza ninguém. O bem é para fazer e o mal para evitar, como o próprio S. Paulo lembrou [1]. Por outro lado, o poema que abre a actual organização da biblioteca do povo de Israel é um hino à bondade e à beleza do universo coroado pela harmonia do ser humano, masculino e feminino. É o fruto da bênção criadora de Deus extasiado com o seu próprio poema cósmico [2].
Nesta perspectiva, dizer Deus é evocar a infinita generosidade de fazer ser e de nos fazer uns para os outros, segundo o carisma de cada um, incompatível com a força demoníaca da destruição. O recurso à diferença histórica não pode significar o culto da indiferença perante a violência, seja de que época for.
Mas a violência actuante no AT pode espantar-nos por ambíguas razões. A mais ambígua de todas é a proclamação comunitária de salmos que invocam Deus para massacres diabólicos. É também ambígua, porque uma desejável selecção dos salmos ou de parte de alguns salmos, para a oração comunitária – o que me parece desejável –, poderia sugerir o projecto de uma Bíblia expurgada, mutilada. Seria uma violência contra a história e um atentado contra a biblioteca de um povo.
Por outro, a presença da violência no AT é inquietante porque não gostamos de nos ver ao espelho: a violência percorre a história dos povos. As matanças e as escravaturas, devido à vontade de dominação económica e política, podem fazer-se em nome de Deus, da negação de Deus, do ateísmo ou da indiferença em relação ao valor da vida humana, que não tem preço. A tentação da inveja, do desprezo e do ódio à diferença do outro toma facilmente conta dos nossos desejos distorcidos.
2. Foi por isso que, para enquadrar a crónica do passado domingo [3], fiz uma alusão rápida a um longo estudo de Frei Francolino Gonçalves, O.P., que distingue dois iaveísmos no AT, o cósmico e o histórico, baseado numa exacerbada política nacionalista que mata e manda matar.
Esse estudo exige outros textos fundamentais do mesmo autor acerca da importância que o método histórico-crítico introduziu nos estudos bíblicos, que exige, por sua vez, outras abordagens ao serviço de uma interpretação que não seja nem míope, nem onde vale tudo [4].
Durante muitos séculos, a leitura teológica da Bíblia foi, praticamente, a única. Até meados do século XIII, não se distinguia exegese e teologia. Formavam uma só disciplina. Na segunda metade do século XVII, assiste-se ao aparecimento de uma nova leitura que começou por centrar-se no AT. Entre os seus pioneiros, devem mencionar-se o judeu de Amesterdão, de origem portuguesa, Bento Spinoza (1632-1677) e o católico francês Richard Simon (1638-1712). Sem duvidar de que a Bíblia fosse a expressão da palavra de Deus em linguagem humana, a nova abordagem não se confundia com a utilização que dela se fazia na elaboração da teologia sistemática.
Entretanto, muita água correu, debaixo e por cima das pontes, até ao dia de hoje. Francolino Gonçalves exerceu a abordagem histórico-crítica, condição para não se fazer do texto um pretexto para arbitrariedade das interpretações. Em que consiste essa abordagem?
“O único objectivo da exegese histórico-crítica é a inteligência do sentido originário dos textos. Não pretende mais nada nem se arroga qualquer outra competência. Estuda os textos bíblicos como estudaria qualquer outro texto antigo, sem ter em conta o estatuto religioso que os cristãos, os judeus e até os muçulmanos lhes reconhecem” [5].
Para o cristão, resta a tarefa indispensável da hermenêutica desses textos.
“O hermeneuta cristão aferirá o sentido dos textos pela bitola da coerência do conjunto das suas Escrituras e da sua Tradição. Por exemplo, não poderá aceitar, sem mais, a ordem divina de exterminar os habitantes do país de Canaã (Dt 7, 1-6) nem a misoginia do que algumas exegetas chamam a “pornografia profética” (cf. Ez 16 e 23) para dar só dois exemplos” [6].
A Comissão Pontifícia Bíblica, à qual Frei Francolino também pertenceu, publicou um documento notável: A Interpretação da Bíblia na Igreja (15/4/1993). Esse documento, além do método histórico-crítico, que depois de vencer muitos obstáculos conseguiu direito de cidadania na exegese, abre-se a outros métodos e abordagens que foram e vão surgindo na análise dos textos literários. Recusa as leituras fundamentalistas porque, em nome de uma fidelidade total à palavra de Deus, esquecem que esta se encarnou numa época precisa da história, num ambiente social e cultural bem determinado. Quem desejar entendê-la deve aceitar a ajuda das ciências humanas disponíveis.
3. Terminei a referida crónica com um correctivo: Jesus repudiou a violência do AT: “Ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo.’ Eu, porém, digo-vos: ‘Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem’.” [7] Preferiu ser morto a matar.
A Carta aos Efésios, atribuída a S. Paulo, mas de estilo muito diferente, afirma que somos “poema de Deus em Cristo Jesus”. Ele é a nossa paz. Destruiu o muro de separação, o muro da inimizade. Anulou, na sua carne, a lei que contém os mandamentos em forma de prescrições. A partir do judeu e do gentio, criou em si próprio um só homem novo, fazendo a paz. Reconciliou-os com Deus, num só Corpo, por meio da cruz. (…) Os gentios são admitidos à mesma herança, membros do mesmo Corpo e participantes da mesma promessa, em Cristo Jesus, por meio do Evangelho [8].
Estas referências, a que se podiam juntar muitas outras, apresentam o cristianismo em continuidade e em ruptura com o AT.
O interessante é que se tenha atribuído a Jesus de Nazaré, um judeu, a continuidade e a ruptura. A investigação de frei Francolino sobre os dois iaveísmos, no AT, a que já me referi, permite perceber a razão que levou Jesus a não aceitar nem rejeitar tudo em bloco.
Tagore, “tal como o seu amigo Gandhi, que sabia de cor e recitava todos os dias as Bem-aventuranças, foi atraído pelo cristianismo e ambos consideravam que os Evangelhos deveriam ser considerados património universal da Humanidade” [9].
Não posso estar mais de acordo. Outra coisa foram os usos santos e perversos que os Evangelhos tiveram na história das Igrejas.
Frei Bento Domingues
no PÚBLICO
[1] Rm 2, 12-16
[2] Gn 1 – 2
[3] A Bíblia, Trump e a violência (14/6/2020)
[4] Cadernos ISTA: Estudos bíblicos hoje, n.º 17, ano IX (2004), pp. 5-45; Mundos Bíblicos, n.º 18, ano X (2005), pp. 7-34; A Dei Verbum, n.º 24, ano XVI (2011), pp. 61-88.
[5] Cadernos ISTA, N.º 24, p. 78
[6] Ib., p. 79
[7] Mt 5, 43-44
[8] Cf. Ef 2, 8-16; 3, 3-8. É importante ler estes textos na íntegra.
[9] Cf. Maria Eugénia Abrunhosa, 7Margens, 6 de Abril 2020