domingo, 14 de junho de 2020

A Bíblia, Trump e a violência

Crónica de Bento Domingues 
no PÚBLICO

1. Donald Trump não era obrigado, mas seguiu o costume de fazer o juramento de posse de Presidente dos EUA sobre a Bíblia. Agora, acossado pelas manifestações contra a morte do afro-americano George Floyd, exibiu-a como autentificação divina da sua política.
As Sociedades Bíblicas Unidas e os diferentes movimentos bíblicos católicos não podem protestar contra o uso da obra mais traduzida e editada no mundo. A Bíblia não é sempre inocente em relação à guerra, ao terror, à violência.
É verdade que o movimento fundamentalista norte-americano confessa que a Bíblia é inspirada pelo Espírito Santo, razão da inerrância das suas escrituras. Servir-se dessa equívoca evocação, para cobertura da política nacional e internacional de Donald Trump que destila ódio e violência, obriga a questionar esse ambíguo biblismo.
É frequente a pergunta: não será o próprio Antigo Testamento (AT), acolhido nas edições cristãs da Bíblia, que documenta as mais extremas e cruéis práticas de ódio e violência, não apenas em nome de Deus, mas até por ordem de Deus?
Não é legítimo responder com o recurso ao contexto histórico para desculpar actuações que foram, são e serão sempre criminosas.
Comecemos pelo mais elementar: de onde vem a palavra Bíblia?
Existia uma cidade fenícia, muito antiga, Biblos, cujas ruínas são visíveis, hoje, no Líbano. É sabido que os fenícios inventaram um dos primeiros alfabetos com 22 signos. Desde o século XI a.C., Biblos era um importante lugar de produção do papiro e tinha uma reputada escola de escribas. Não admira que os seus escritos tenham usado o nome da cidade. A língua grega herdou a palavra biblion para designar um escrito, um livro. Em grego, o plural – livros – diz-se: ta biblia. Este plural usava-se, também, para designar uma biblioteca. Alguns séculos, antes da nossa era, os judeus de cultura grega usaram esta expressão, ta biblia, para designar a colecção dos seus livros sagrados.
Os cristãos adoptaram o mesmo termo para estes livros que, para eles, formam o AT. Só na Idade Média é que este plural grego foi transcrito em latim, tal e qual, biblia, mas tornou-se um feminino singular. O seu emprego designará, doravante, para os cristãos, o conjunto dos livros do Antigo e do Novo Testamentos. Este feminino singular resultou na palavra portuguesa Bíblia.
O aspecto “plural” desapareceu aparentemente na passagem do grego para o latim, mas não alterou a realidade. A Bíblia não é um livro, mas a “biblioteca” de um povo, formada por uma vasta colecção de livros de épocas muito diferentes e de diversos géneros literários.
Ao apresentar-se encadernada como um só livro, aparenta uma imaginária unidade e autonomia no seio da literatura mundial. Por isso mesmo, é importantíssimo insistir: mesmo encadernada num só volume, não é um livro, mas uma biblioteca de muitos estilos, de muitas épocas, escrita ao longo de vários séculos. Ao ser considerada, de modo incorrecto, como um ditado divino tudo se torna mais enigmático para quem não renuncia a pensar, a interrogar e a interpretar aquele vasto mundo [1].

2. Na sua Autobiografia publicada em 1887, Charles Darwin conta como nasceram as suas dúvidas sobre a religião e como chegou a perder a fé: “Dei-me conta de que no Antigo Testamento aparece um Deus terrível, com sentimentos de um tirano vingativo; vi que a Bíblia não era mais fiável do que os livros sagrados dos hindus, ou as crenças de qualquer bárbaro.tlpedro”
Darwin não foi o único a perder a fé com a leitura da Bíblia. Inúmeros cientistas, filósofos, pensadores, catequistas e até simples cristãos sentiram-se escandalizados perante este livro, onde se vê Deus a vingar-se, destruindo e assassinando quem Lhe desobedece.
Não faltou quem se desse ao trabalho de contar quantas pessoas, na Bíblia, aparecem como eliminadas por Deus. E o número é arrepiante: 2.038.334 pessoas! Sem incluir os mortos nos grandes extermínios como o dilúvio universal, a destruição de Sodoma ou a matança dos primogénitos do Egipto, cujas cifras não aparecem.
Parece que, nesse tempo, o Deus da Bíblia gostava de matar os seus opositores sem o menor escrúpulo, o que levou o inglês Derek Clayton a exclamar: “Se mais cristãos lessem a Bíblia, haveria menos cristãos.” [2]
Dissemos que o AT é a biblioteca de um povo em todos os seus aspectos e dimensões. A sua identidade mais saliente é a de ser um povo liberto por Deus da escravidão no Egipto e por Ele conduzido para a terra prometida. Resultou numa aliança. Deus é o aliado deste povo que escolheu e com o qual se comprometeu, mas que lhe exige fidelidade a esta aliança. É uma teocracia política. Será interpretada como devendo coincidir os interesses de Deus com os deste povo. As ambições territoriais deste povo têm de ser defendidas por Deus, mesmo que isso implique a destruição dos outros povos.

3. A biblioteca do AT não é uma biblioteca de violência e de terror. Encerra as obras mais fascinantes da literatura. Surge uma dificuldade. É tudo considerado palavra de Deus. Muitas passagens parecem obra do diabo. Como fazer a destrinça
Frei Francolino Gonçalves, investigador e professor da Escola Bíblica de Jerusalém, desenvolveu uma investigação considerada por grandes especialistas como muito inovadora, publicada nos Cadernos ISTA [3].
Desse longo e complexo texto, deixo, aqui, apenas uma pequena referência que não deturpa o essencial:
“O AT contém assim duas representações diferentes de Iavé. Segundo uma, ele é o Deus criador que abençoa todos os seres vivos; segundo a outra, ele é o Deus que está ligado a Israel, o seu povo, a quem protege e salva.
Os exegetas não prestaram a estas vozes discordantes a atenção que mereciam. A esmagadora maioria parece nem as ter ouvido. Por isso, ficaram sem eco, não tendo chegado ao conhecimento dos teólogos, dos pastores, nem, por maioria de razão, do público cristão. As minhas pesquisas nesta matéria confirmaram, essencialmente, o resultado dos estudos que referi e, além disso, levaram-me a propor uma hipótese de interpretação do conjunto dos fenómenos religiosos do AT que é nova. A meu ver, o AT documenta a existência de dois sistemas iaveístas diferentes: um fundamenta-se no mito da criação e o outro na história da relação de Iavé com Israel. Simplificando, poderia chamar-se iaveísmo cósmico ao primeiro e iaveísmo histórico ao segundo. Contrariamente à opinião comum, a fé na criação não é um elemento recente, mas constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT” [4].
Jesus repudiou a violência do AT: Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem [5]. Preferiu ser morto a matar. Voltarei a este assunto.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Ver: Julio Trebolle Barrerra, Bíblia Judaica e Bíblia Cristã: Introdução à História da Bíblia, Vozes, 2000; Miguel Perez Fernández, Julio Trebolle Barrerra, José Manuel Sanchez Caro, História de la Bíblia, Trotta, 2006
[2] Cf. Ariel Álvarez Valdés, A Bíblia incita à violência e à vingança, in Bíblica n.º 388 (Maio-Junho 2020), p.99
[3] Francolino J. Gonçalves, Iavé, Deus de Justiça e de Bênção, Deus de amor e de Salvação, ISTA n.º 22, ano XIV (2009), 107-152
[4] Op. Cit., p. 115. Os itálicos são da minha responsabilidade
[5] Mt 5, 43-44

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