Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO
1. Segundo a teoria do Big Bang – teoria de um padre –, o Universo terá começado há 14 mil milhões de anos. Pelos vistos, a obra-prima da estruturação da Natureza é a espécie humana. Somos provavelmente o mais alto nível de complexidade que conhecemos, a estrutura mais complexa do Universo [1]. Não somos apenas a espécie mais numerosa, mas também a que desenvolveu mais o pensamento abstracto, científico, artístico, religioso e ético.
1. Segundo a teoria do Big Bang – teoria de um padre –, o Universo terá começado há 14 mil milhões de anos. Pelos vistos, a obra-prima da estruturação da Natureza é a espécie humana. Somos provavelmente o mais alto nível de complexidade que conhecemos, a estrutura mais complexa do Universo [1]. Não somos apenas a espécie mais numerosa, mas também a que desenvolveu mais o pensamento abstracto, científico, artístico, religioso e ético.
No mistério vivemos, nos movemos e existimos, cheios de perguntas metafísicas e científicas, banhados em espírito criador de beleza, sem o qual não floresce nem o amor nem a poesia nem a grande música, alma e ritmo de todas as artes.
No entanto, sem ética, sem procurarmos, uns com os outros, estilos de boa qualidade de vida, em instituições justas e amistosas, podemos deitar a perder as maiores conquistas do género humano. Elas próprias se podem tornar instrumentos sofisticados de destruição.
Sem a virtude da prudência pessoal e social – virtude das decisões ponderadas – a governar a nossa liberdade, cedemos facilmente aos caprichos dos nossos apetites desorientados. Estragamos tudo: as relações com a natureza e com os outros. Continuamos a gastar, em armamento e em guerras, o que vai faltar para cuidar da Casa Comum.
É por isso que desisti do ponto central da teodiceia, que regressou agora, em alguns ambientes, a propósito da covid-19, com a velha e revelha questão: se Deus existe, por que é que tolera os terrores e injustiças flagrantes da condição humana?
Apetece fazer outra pergunta: se nós já conhecemos os autores do crime, da desumanidade, por que razão recorrer a Alguém do qual nem sequer sabemos positivamente como Ele é e como actua? Para o bem e para o mal, podemos estar a invocar ou invectivar o nome de Deus em vão, em vez de combater os males de que somos responsáveis.
Contra os simplismos da nomeação de Deus fui vacinado, nos anos 50 do século passado, no encontro com o pensamento do chamado Pseudo-Dionísio. Ele era, de facto, um teólogo bizantino sírio, dos finais do século V ou inícios do século VI. Para recomendar a sua obra genial de teologia mística, teologia apofática, mais conhecida como teologia negativa, foi usada a astúcia de ser presentada como a de um convertido da pregação de S. Paulo em Atenas, chamado precisamente Dionísio, o Areopagita [2].
Teve uma influência muito benéfica em toda a Idade Média e foi pena que a descoberta de que, afinal, não gozava do prestígio da época apostólica, tenha levado a esquecer algo que nunca deve ser esquecido: não podemos saber como Deus é e todas as afirmações acerca desse infinito mistério, para saltarem para o seu insondável sentido metafórico, devem ser precedidas de uma negação. Deus não pode ser como o figuramos.
A teologia menos incompetente é a que nasce da linguagem simbólica, metafórica, da energia poética irrigada pela grande música. Mas é sobretudo aquela que escuta a Pergunta que ecoa, desde o despontar da consciência humana, recolhida como voz de Deus no Livro do Génesis e no Evangelho segundo S. Mateus: que fizeste do teu irmão? [3] É essa Pergunta que leva a tribunal as respostas de todas as culturas e civilizações e de quem acredita ou não acredita em Deus.
2. Herberto Helder (1930-2015) mudou para português poemas de muitas culturas [4] e publicou uma súmula com o título Ou o poema contínuo [5], súmula de várias obras de um grande poeta teólogo, à procura de uma nova linguagem de que deixo, aqui, alguns fragmentos: “É preciso criar palavras, sons, palavras/vivas, obscuras, terríveis.// …É preciso criar os mortos pela força/magnética das palavras// …Há palavras que requerem uma pausa e silêncio…/ Ouves o grito dos mortos?”
H. Helder trabalhou uma nova linguagem para falar de Deus, palavra que só pode ser usada para destroçar a morte e reviver: “…Acabou./ Sento-me a conversar com Deus: palavra, música, martelo/ uma equação: conversa de ida e volta/ Depois há gente que fala entre si, depois é o medo, depois é o delírio./ Escuta a breve canção dentro de ti. Que diz ela?/ Não move as coisas com as suas auras, nem tu nem a tua canção/ pertencem ao mundo cheio, alma que sopra./ Nada se liga entre si, Deus não se debruça na canção; destroça/ a cadência.”
“…e depois ninguém fala, e cada/ coisa actua/ sobre cada coisa, e tudo o que é visível abala/ o território invisível./ Redivivo. E foi para esta mínima palavra que apareceu não/ se sabe o quê arrancou/ à folha e à esferográfica canhota a poderosa superfície/ de Deus, e assim é/ que te encontraste redivivo, tu que tinhas morrido um momento antes,/ apenas.”
Hoje é o dia da Mãe e das habituais e generosas piroseiras. Por isso, é também com H. Helder que evoco este glorioso dia: “As mães são as mais altas coisas/ que os filhos criam, porque se colocam/ na combustão dos filhos porque/ os filhos estão como invasores dentes-de-leão no terreno das mães.// E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos…// Por meio da mão dele que toca a cara louca/ da mãe que toca a mão pressentida do filho. E por dentro do amor, até somente ser possível amar tudo,/ e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.”
3. Este é também o Domingo do Bom Pastor. A pastorícia era um modo de vida tradicional dos hebreus. Um bom pastor é aquele que sabe cuidar das ovelhas e que, por isso, reconhecem a sua voz inconfundível.
S. João polemiza com aqueles que, nas suas comunidades, se apresentavam como pastores e não passavam de ladrões e salteadores. Sugavam o rebanho. Não se parecem nada com Jesus que vem para que tenham vida e a tenham em abundância [6]. Nas catacumbas, está figurado com uma ovelha aos ombros, para evocar uma parábola de S. Lucas que não deixava ninguém para trás. São atribuídas a S. Paulo as Cartas Pastorais que apontam o que, nas Igrejas, devem ser os encarregados das comunidades. Santo Agostinho, ao dizer convosco sou cristão, para vós sou bispo, cunhou para sempre o programa: nunca uma comunidade sem bispo nem um bispo sem comunidade.
As reformas na Igreja têm de implicar toda a comunidade, a começar pelos seus dirigentes. É conhecida a voz de Frei Bartolomeu dos Mártires (1514-1590), no Concílio de Trento, que exigia uma reforma de toda a Igreja, mas a começar nos bispos e nos cardeais que precisavam de uma eminentíssima reforma.
O século XX teve um excepcional bom pastor: João XXIII. O século XXI tem o Papa Francisco. Dele, fala o mundo inteiro, porque todas as pessoas de boa vontade se reconhecem nos seus gestos e nas suas palavras.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Expreso-R. 25.04.2020. Vale a pena ler a entrevista de Luciana Leiderfarb a Hubert Reeves
[2] Act 17, 34
[3] Gen. 4,9-10; Mt 25,11-47
[4] O Bebedor Nocturno. Poemas mudados para português, Porto Editora, 2015
[5] Ou o poema contínuo. Súmula. Assírio & Alvim, 2001
[6] Jo, 10, 1-10; cf. Lc 15, 4-7