domingo, 5 de abril de 2020

TECER REDES DE ESPERANÇA

Crónica de Bento Domingues 


«A morte não podia ser a última palavra porque, na sua morte, Jesus deu futuro àqueles que o matavam.»

1. Li comovido e meditei a homilia do Papa Francisco, do dia 27 de Março, na praça vazia de S. Pedro, cheia do mundo inteiro. Dou graças a Deus pela presença activa desta voz que congrega as energias de todas as pessoas que tecem redes de esperança, neste tempo ferido de guerras, fomes, exclusões e agora pelo devastador covid-19.
Essa voz de um corpo fragilizado reúne, no mesmo cuidado, os povos do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, crentes e não crentes, a começar pelos mais pobres, doentes e desprotegidos, acompanhados pelas pessoas que arriscam a própria vida para não deixarem esse vasto mundo sem protecção e consolo.
São estas pessoas que estão a incarnar, de forma heróica, nestes meses de Março e Abril – e não sabemos por quanto tempo ainda serão indispensáveis – a ética samaritana a que me referi nesta coluna [1].
Esta pandemia está a precisar de muitas redes de cirineus que ajudem a levar a cruz das suas inumeráveis vítimas, agora e no futuro. Também elas precisam da manifestação da solidariedade agradecida de todos os cidadãos de alma magnânima.
Hoje, é Domingo sem Ramos das muitas comunidades cristãs de todos os continentes. Pode-se falar de Semana Santa por causa do infinito perdão pedido por Jesus Cristo, do alto da cruz, para todos os que colaboraram no seu assassinato legalizado com apoio popular. É uma celebração que nasce das narrativas do Novo Testamento, acerca das quais dispomos de excelente produção de crítica histórica, exegética, teológica e litúrgica, bastante ignorada [2].
Como escreveu Frederico Lourenço, na sua introdução aos Evangelhos, é provável que estes quatro textos nem merecessem, ao leitor culto da época, o alto estatuto de literatura. No entanto, estes textos conquistaram o mundo antigo, tanto grego como romano.
Lendo-os dois mil anos depois, acrescenta, não é difícil perceber porquê. Sobre um desses textos já se escreveu que se trata do “mais divino de todos os livros divinos”: na verdade, essa descrição assenta a qualquer um deles. São textos que – com a sua mensagem sublime veiculada por palavras cuja beleza desarmante ainda deixa arrepiado quem os leu e releu ao longo da sua vida inteira – estão simplesmente numa categoria à parte.
São textos insubstituíveis, confessa o tradutor de tantas obras-primas da nossa Antiguidade, porque a verdade é esta: tanto crentes como não crentes andaremos às voltas com Jesus nas nossas cabeças, enquanto houver seres humanos sobre a Terra [3].

2. Neste Domingo, é proclamada a Paixão de Jesus Cristo segundo S. Mateus. Quem se deixar iluminar pela música que ela provocou, em J.S. Bach, talvez possa descobrir o que nenhuma teologia pode conseguir.
Sob acção dessa luz, Eduardo Lourenço escreveu um texto, sem data, que é preciso ler e reler e do qual não resisto a deixar aqui alguns recortes:
“No abismo intemporal onde a música me mergulhou, sumiu-se a luz monótona da lâmpada, a nitidez da hora nocturna, o meu próprio peso terrestre e mortal.”
“O céu não será o céu se lá não se tocar João Sebastião.”
“(…) A mim próprio, o dialecta incurável da conciliação dos contrários, o sofista triste da esperança terrestre pregada aos outros, a magia humana de João Sebastião Bach arranca-me por momentos da árida e solitária planície da Insignificação, de que sou caminheiro sem tréguas. As lágrimas correm sem vergonha na minha face de homem rendido e humilde e o canto imortal rasga a minha carne até lá onde eu gosto de imaginar que está o mais profundo que me sustenta com o grito inexpiável do chamamento à única presença que desde a infância eu sei que importa à minha vida.”
“(…) Entre tantas formas de tentação, e só aqueles que nada têm a perder não sabem o que é a tentação, a tentação de Deus é a mais perigosa, a mais irresistível, porque Deus é a forma que em absoluto convém à nossa alma.” [4]

3. Numa das anáforas mais usadas na liturgia Eucarística, a evocação da Última Ceia é introduzida por uma expressão arrepiante: Na hora em que Ele Se entregava, para voluntariamente sofrer a morte, tomou o pão... Quem compôs esta anáfora e os que a usam não se dão conta do seu horror?
Os romanos usavam os três tipos mais cruéis de executar os condenados: agonizar na cruz, ser devorado pelas feras e ser queimado vivo.
A crucifixão não era uma simples execução, mas uma lenta tortura. Ao crucificado não se danificava nenhum órgão vital. Por isso, a sua agonia podia prolongar-se durante longas horas e até dias. Cícero chamou-lhe o suplício mais cruel e terrível.
Era normal combinar o castigo básico da crucifixão com humilhações e tormentos. Os dados são arrepiantes. Não era invulgar mutilarem o crucificado, vazarem-lhe os olhos, queimarem-no, flagelarem-no e torturarem-no de diversas formas, antes de o suspenderem da cruz. O modo de levar a cabo a crucifixão ficava entregue ao sadismo dos verdugos. Morto era pasto dos abutres. [5]
Dizer que Jesus se entregou voluntariamente a este tipo de crueldade é blasfemar. Quando S. João põe na boca de Cristo, “ninguém me tira a vida, sou eu que a dou”, refere-se a uma realidade completamente diferente. [6]
Jesus não foi obrigado a seguir a missão libertadora que empreendeu adulto, livremente, como graça do Espírito Santo. Foi escolha sua e, quando o prenderam, não renegou o caminho que escolhera, de alma e coração: dar vida e esperança às vítimas da injustiça e de todas as formas de opressão.
Nunca desejou a morte. Lutou contra ela e chorou a morte de um grande amigo. Não traiu. Nenhuma ameaça, nenhuma tortura o levou a trair, nem mesmo a da morte, o seu projecto libertador. [7]
Jesus não encarou a morte como Sócrates: Sócrates mandou oferecer um galo ao deus da medicina, Asclépio, porque finalmente o envenenamento libertava-o da prisão do corpo. Jesus Cristo sentiu todo o horror da morte a ponto de perguntar por Deus: meu Deus, Meu Deus porque me abandonaste? No entanto, não encarou a morte como um niilista: nas tuas mãos entrego o meu espírito.
A morte não podia ser a última palavra porque, na sua morte, Jesus deu futuro àqueles que o matavam.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] PÚBLICO, 22.03.2020
[2] Em José Antonio Pagola, Jesus. Uma abordagem histórica, Gráfica de Coimbra 2, 2008 e Michel Quesnel, Jesus. O Homem e o Filho de Deus, Gradiva, 2005, podem encontrar a bibliografia de referência
[3] Frederico Lourenço, Bíblia. Novo Testamento. Os Quatro Evangelhos, Vol. I, Quetzal, 2016
[4] Eduardo Lourenço, Tempo da Música. Música do Tempo, Gradiva, 2017, 50-51; 124; 147; 157
[5] José Antonio Pagola, Op. cit., 387-426
[6] Jo 10, 16-18
[7] Lc 4, 16-30

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue