Para os dias de isolamento, sugiro a ocupação de parte do tempo com leituras agradáveis. As notícias do coronavírus (COVID-19) e os conselhos que de todos os lados surgem, por vezes contraditórios, não podem ocupar a nossa mente com caráter obrigatório durante todas as horas do dia. Penso que os noticiários normais das televisões, rádios e jornais são mais do que suficientes. Para além disso, ler, ver e ouvir tudo é brutalizar a nossa liberdade de viver. Venho, então, com uma proposta de leitura, até porque, no dia a dia de cada um de nós, com a azáfama de trabalhos e outras obrigações, não temos muitos momentos para apreciar bons livros. Comigo também acontece isso. Na minha modesta biblioteca, há obras à espera de vez. Hoje, porém, recomendo “A Vida e o Sonho” de Raul Brandão, um dos escritores que mais aprecio.
“A Vida e o Sonho” é uma antologia com inéditos e guia de leitura organizada por Vasco Rosa comemorativa dos 150 anos do nascimento de Raul Brandão (1867-1930), um escritor que cantou como poucos a nossa Ria da Aveiro, na minha modesta opinião, que não passo de um simples e apaixonado leitor. Como apreciei “Os pescadores”, “As ilhas desconhecidas”, “Húmus”, “Memórias” e outros!
“A Vida e o Sonho” proporciona a quem o puder ler um pouco do muito que escreveu. E para nós, os que sentimos como ninguém a beleza da nossa laguna, lá vem a nossa Gafanha com retrato de uma beleza ímpar de há 100 anos
«Quando passei na Gafanha, vi as cachopas da beira-rio, todas molhadas, sempre metidas na água a rapar o moliço. Feias e ingénuas. A uma calculei-lhe: — Tem para aí treze ou catorze anos. — Tenho vinte e um, e três filhos, respondeu. — Outra tinha ficado a olhar para mim com olhos inocentes de bicho e as mãos postas sobre os seios redondinhos — sobre aquilo, como diz a tia Ana, que o Senhor lhe deu e ela precisa...
A ti Ana Arneira, com cuja amizade me honro, é um dos meus melhores conhecimentos da Gafanha. Mulher capazona, como por lá se diz. Acompanha-me pelo areal, e conta-me logo à primeira a sua vida. Tipo atarracado e forte, de grossos quadris, vestida de escuro, chapéu na cabeça e aguilhada em punho. O homem foi para o Brasil há muitos anos ( — é o rei dos homes!... —), ficou ela e os filhos por criar. Criou-os todos. Netos, doenças, lutos. Nunca desanimou.» E não acrescento mais nada... Leiam o livro nestes dias de isolamento e não vivam, minuto a minuto, os dramas do COVID-19. A vida vai regressar à normalidade por estes dias.
Fernando Martins