domingo, 15 de março de 2020

QUERIDA AMAZÓNIA

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

Na sequência do Sínodo sobre a Amazónia, que se realizou em Roma de 6 a 27 de Outubro do ano transacto, Francisco publicou, no passado dia 2 de Fevereiro, uma Exortação Apostólica Pós-Sinodal, a que deu o título “Querida Amazónia”. 

Nela, formula quatro grandes sonhos: 1. O sonho de “uma Amazónia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida e a sua dignidade promovida.” 2. O sonho de “uma Amazónia que preserve a riqueza cultural que a caracteriza e na qual brilha de maneira tão variada a beleza humana.” 3. O sonho de “uma Amazónia que guarde zelosamente a sedutora beleza natural que a adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas.” 4. O sonho de “comunidades cristãs capazes de se devotar e encarnar de tal modo na Amazónia que dêem à Igreja rostos novos com traços amazónicos.” 

E explicita e concretiza os sonhos: 

1. Um sonho social. Impõe-se a indignação e um grito profético a favor dos mais pobres e explorados, contra os interesses colonizadores, antigos e presentes, que lucram “à custa da pobreza da maioria e da depredação sem escrúpulos das riquezas naturais da região” e dos seus povos. “Os povos nativos viram muitas vezes, impotentes, a destruição do ambiente natural que lhes permitia alimentar-se, curar-se, sobreviver e conservar um estilo de vida e uma cultura que lhes dava identidade e sentido.” Danificar a Amazónia, não respeitar o direito dos povos nativos ao território e à autodeterminação tem um nome: “injustiça e crime”.

2. Um sonho cultural. É preciso assumir e defender os direitos dos povos e das suas culturas. Não se pode destruir a cultura dos povos, pois ela faz parte da identidade. Destruí-la conduz à desintegração. Não se pode continuar a considerar esses povos como “selvagens não-civilizados”. Por isso, “o objectivo é promover a Amazónia; isto, porém, não implica colonizá-la culturalmente, mas fazer de modo que ela própria aproveite o melhor de si mesma.” Sentido da melhor obra educativa: “cultivar sem desenraizar, fazer crescer sem enfraquecer a identidade, promover sem invadir.”

3. Um sonho ecológico. Para entender melhor o pensamento de Francisco, valerá a pena ir ao étimo das palavras, pois ecologia, economia e ética estão em relação e interpenetram-se, em conexão com casa. Assim: ecologia tem o oikos grego que significa casa (portanto, tratado da casa), como economia, de oikos, casa, e nómos, lei (portanto, governo da casa) e ética, de êthos, morada (portanto, como devemos agir para habitarmos a nossa casa autêntica, sermos verdadeiramente nós). 

Assim, percebe-se o conceito de “ecologia integral”: a ecologia da natureza exige uma ecologia humana e uma ecologia social. “Se o cuidado das pessoas e o cuidado dos ecossistemas são inseparáveis, isto torna-se particularmente significativo lá onde a floresta não é um recurso para explorar, é um ser ou vários seres com os quais se relacionar.” Daí, uma ética do cuidado pela Mãe Terra, pela casa comum, tanto mais quanto já compreendemos que, por exemplo, o que nós chamamos alterações climáticas para os mais pobres é fome: o clamor da natureza é ao mesmo tempo o clamor dos mais pobres. A conclusão só pode ser: se o equilíbrio da terra também depende da Amazónia, “o interesse de algumas empresas poderosas não deveria ser colocado acima do bem da Amazónia e da Humanidade inteira.” Os projectos económicos internacionais de indústrias extractivas, energéticas, madeireiras e outras que destroem e poluem não podem ignorar os seus efeitos ambientais deletérios. “Além disso, a água, que abunda na Amazónia, é um bem essencial para a sobrevivência humana.” 

Impõe-se, pois, mudar de paradigma, o que significa também libertar-se do “paradigma tecnocrático e consumista que sufoca a natureza e nos deixa sem uma existência verdadeiramente digna.” Esta mudança exige, por sua vez, outro tipo de educação: “Não haverá uma ecologia sã e sustentável, capaz de transformar seja o que for, se não mudarem as pessoas, se não forem incentivadas a adoptar outro estilo de vida, menos voraz, mais sereno, mais respeitador, menos ansioso, mais fraterno.” 

4. Um sonho eclesial. Muitas vezes me perguntei como seria visto e dito o cristianismo, se ele, nascido dentro da cultura bíblica, em vez de ter, imediatamente a seguir, passado para a cultura helenista, sendo nela sobretudo que a doutrina foi reflectida e dogmatizada, tivesse passado, por exemplo, para a Índia ou para a China. Seria certamente a mesma fé cristã, mas dita e reflectida noutra linguagem e com outros conceitos. Pergunte-se, por exemplo: quando hoje se confessa o Credo e se diz, referido a Jesus: “gerado, não criado, consubstancial ao Pai”, ou se diz: “creio na ressurreição da carne”, ou “desceu aos infernos”, em que pensarão as pessoas que já não vivem nem pensam no contexto helenista ou bíblico? 

Isto, para dizer a importância da linguagem e da cultura e da necessidade da inculturação: a mesma fé precisa de ser vivida e dita dentro de culturas diferentes, o que implica também outros símbolos e rituais nas celebrações litúrgicas. Neste sentido, porque é que em todas as culturas se há-de celebrar a Eucaristia com pão e vinho e não com os elementos próprios das respectivas sociedades e culturas? 

Francisco é muito sensível à inculturação e isso está claro no seu sonho eclesial: inculturação social e espiritual, inculturação da liturgia, inculturação do ministério. 

4.1. A unanimidade no coro de louvores quanto aos três primeiros sonhos não se repetiu quanto ao sonho eclesial, pois ele foi para muitos uma decepção, afirmando-se mesmo que constituiu um erro, já que se perdeu uma oportunidade histórica. De facto, no documento final do Sínodo, ficaram, com a votação positiva de mais de dois terços, pedidos para que houvesse a possibilidade da ordenação de homens casados e do diaconado feminino. Contra todas as expectativas, esses dois temas foram ignorados na Exortação “Querida Amazónia”. 

4.2. Jesus não pertencia à classe sacerdotal, não era sacerdote no sentido clerical. Não consta que tenha ordenado alguém sacerdote “in sacris”. Na Carta de São Pedro, lê-se que os cristãos são todos sacerdotes pelo baptismo, povo sacerdotal. Nas primeiras comunidades, houve inclusivamente mulheres que presidiram à celebração da Eucaristia... 

Neste quadro, há teólogos que pensam, com razão, que, em caso de necessidade, uma vez que a Eucaristia é fonte e cume de toda a vida cristã como disse o Concílio Vaticano II, quando não há um padre ordenado — é esta a situação da Amazónia, onde as comunidades podem passar mais de um ano sem a presença de um padre —, as comunidades poderão celebrar validamente a Eucaristia, sem a presença do padre. Significativamente, o Concílio Vaticano II evitou a expressão, referida ao padre, de “alter Christus” (outro Cristo). 

Ainda neste sentido, houve, em pleno Sínodo de Outubro, o testemunho de uma religiosa, a espanhola Alba Teresa Cediel — uma das 35 mulheres que participaram no Sínodo, com voz, embora sem poder votar —, a dizer que as mulheres “acompanhamos os indígenas nos diferentes eventos, quando o sacerdote não pode estar presente e se é preciso um baptismo, baptizamos, se alguém quer casar, nós estamos presentes e somos testemunhas desse amor, e muitas vezes acontece ouvir em confissão, mas não demos a absolvição, mas...”. Neste contexto, é teologicamente legítimo perguntar: porque é que não dão a absolvição? No Evangelho segundo São João está escrito que Jesus disse: “a quem perdoardes os pecados serão perdoados...” Disse a quem? Não foi aos Apóstolos, foi aos discípulos (oi mathetai). 

De qualquer modo, nos números 87 e 88 da Exortação, Francisco veio lembrar que só o sacerdote, “mediante a Ordem sacra”, tem o poder, “que não se pode delegar”, de presidir à Eucaristia — só ele pode dizer: “Isto é o meu corpo” —, e “há outras palavras que só ele pode pronunciar: “Eu te absolvo dos teus pecados”. Evidentemente, nestas circunstâncias, uma vez que também reconhece, como não podia deixar de ser, que “a Eucaristia faz a Igreja” e “nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da Santíssima Eucaristia”, acentua-se e ergue-se ainda mais gritante a pergunta: Porque é que Francisco não abriu a porta à ordenação de homens casados? 

Outra pergunta decisiva: a última palavra está dita ou, pelo contrário, vem aí o que poderá ser o início da verdadeira revolução para Igreja, a partir de Francisco? 

É o que vamos ver na crónica da próxima semana. 

Anselmo Borges no Diário de Notícias





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