"O documento do Papa é longo e magnífico em quase tudo. Para não ficar só em palavras, precisava de uma decisão urgente que não aconteceu."
1. As concepções de Igreja que deformaram o Evangelho de Cristo, durante séculos, foram muito alteradas no Vaticano II (1962-1965), mas não foram apagadas. Tiveram muitas reaparições depois, como aliás já comecei a referir no Domingo passado. Por exemplo: o cardeal Jan Pieter Schotte (1928-2005) foi, no pontificado de João Paulo II, o secretário-geral do Sínodo dos Bispos de 1985 até 2004. Ao falar do Direito Canónico já revisto, declarou: “Não vos enganeis, na Igreja católica, um pároco não tem de prestar contas a ninguém salvo ao seu bispo; um bispo não tem de prestar contas a ninguém salvo ao Papa; o Papa não tem de prestar contas senão a Deus.” Uma declaração destas justifica a observação de Bergoglio, segundo a qual “o clericalismo engendra uma divisão no corpo eclesial”.
O citado cardeal continuou, mesmo depois do Vaticano II, dependente da ideologia do Papa Pio X que, em 1906, descreveu a Igreja como uma “sociedade de essência desigual que compreende duas categorias de pessoas: os pastores e o rebanho. (…) Essas categorias são tão claramente distintas entre si que só no corpo pastoral residem o direito e a autoridade necessários para promover e dirigir todos os membros rumo às finalidades sociais; e que a multidão não tem outro dever senão o de se deixar guiar e de seguir, como um dócil rebanho, os seus Pastores”.
Hervé Legrand procurou explorar os fundamentos ideológicos de Pio X e do cardeal Schotte. Começou pela declaração do Papa Francisco: o clericalismo é favorecido pelos próprios padres ou pelos leigos, dependendo do modo de conceber a autoridade na Igreja.
Bergoglio não quer dizer que essa é a atitude de todos os padres nem de todos os leigos. Refere-se ao mecanismo das suas relações. Em termos sociais, este mecanismo é desencadeado quando os clérigos inculcam nos leigos a ideia do seu não-poder e do seu não-saber, destacando a sua própria superioridade pelo facto de só eles terem recebido a chamada graça da ordenação. O clericalismo não só anula a personalidade dos leigos cristãos, mas também tem a tendência a desvalorizar o essencial da fé: a graça baptismal fruto do Espírito Santo no coração dos fiéis.
De facto, em termos sacramentais, o baptismo é a fonte de toda a vida cristã. A nossa primeira e fundamental consagração tem as suas raízes no baptismo. Isto é tão verdade, na concepção católica da Igreja, que sem baptismo não pode haver nem padres nem bispos.
No entanto, é preciso nunca perder de vista o que dizia S. Tomás: Deus e a sua graça não estão limitados nem condicionados pelos sacramentos. Deus não é comandado pelas ideias que fazemos Dele. Santo Agostinho teve a lucidez de não se deixar enganar pelos rótulos de pertença: muitos dos que estão dentro da Igreja estão fora e muitos dos que estão fora estão dentro.
Por outro lado, é normal que uma fé incarnacionista, como é o cristianismo, disponha de celebrações sacramentais da vida cristã que percorrem todas as etapas da existência humana, nas suas diversas manifestações pessoais e comunitárias. Os cristãos, homens ou mulheres, podem ser chamados a exercer uma função na comunidade por causa da vida da própria comunidade. Esta função não os coloca acima dos outros cristãos. O bispo não é um cristão superior. Tem uma função de serviço na comunidade baptismal, na qual todos são sacerdotes e é só por isso que, indirectamente, lhe chamam sacerdócio ministerial, mas o primado pertence à condição de cristão.
Enquanto isto não for entendido, anda tudo trocado: chama-se Igreja a um edifício, quando este existe para reunir a Igreja, os cristãos; pensa-se que aqueles ou aquelas que usam cabeção, mitra ou chapéu cardinalício ficam numa situação superior aos outros, subiram de categoria, subiram na carreira. Foi isso que Cristo sempre recusou no relacionamento com os discípulos. De facto, tudo isso não passa de adereços que a história fabricou. Jesus nunca usou cabeção, mitra ou chapéu cardinalício.
2. O Papa Francisco enviou ao povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade a Exortação Apostólica Pós-Sinodal, Querida Amazónia.
Insiste que a Igreja é chamada a caminhar com os povos da Amazónia. Lembra que, na América Latina, esta caminhada teve expressões privilegiadas, como a Conferência dos Bispos em Medellín e a sua aplicação à Amazónia em Santarém; em Puebla, em Santo Domingo e na Aparecida. O caminho continua e o trabalho missionário, se quiser desenvolver uma Igreja com rosto amazónico, precisa de crescer numa cultura do encontro rumo a uma “harmonia pluriforme”. Mas, para tornar possível esta encarnação da Igreja e do Evangelho, deve ressoar incessantemente o grande anúncio missionário.
Teve sonhos admiráveis de olhos muito abertos: um sonho social, um sonho cultural, um sonho ecológico e um sonho eclesial. Todos esses sonhos precisam de ser concretizados, inculturados. É um documento notável e que todas as pessoas de boa vontade e de amor à casa comum deviam ler, reler e tirar conclusões para a sua vida, para a sua prática.
3. Não é por acaso que, de todos os sonhos do Papa Francisco, só foi travado o sonho eclesial nas suas diversas inculturações.
Afirma, com toda a verdade, que não podem existir comunidades cristãs sem Eucaristia. Diz, também, que a sua presidência supõe o ministério ordenado dos padres e dos bispos que assumam a cultura e a vida cristã das comunidades, constituídas por homens e mulheres com uma grande diversidade de carismas. Mostrou que na querida Amazónia existem comunidades católicas fervorosas.
É impossível que não existam candidatos à ordenação. O que falta é clarividência e vontade dos bispos para discernir quem, casado ou solteiro, homem ou mulher, esteja em condições de poder assumir o ministério da presidência da Eucaristia.
Os grandes teólogos do Vaticano II, Edward Schillebeeckx e Yves Congar, já o escreveram há muitos anos. O primeiro diz textualmente: “Constatando que esta penúria de ministros é uma situação eclesialmente insustentável, que não tem razão de ser, eu peço que se imponham as mãos aos membros crentes comprometidos no serviço das Igrejas, durante uma epiclese adequadamente formulada, criando assim uma nova diferença dos ministérios qualificados. Há numerosos candidatos. O obstáculo está então noutro lugar.” Y. Congar diz que “estas linhas… eu posso subscrever” [1].
O documento do Papa é longo e magnífico em quase tudo. Para não ficar só em 300 palavras, precisava de uma decisão urgente que não aconteceu.
Frei Bento Domingues no Público
[1] Para estas referências e para todo este debate ver: José Nunes, O.P., Pequenas comunidades cristãs. O Ondjango e a inculturação em África/Angola, UCP, Porto 1991, 294-300