Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO
No âmbito religioso, a imaginação não pode ficar paralisada pela restrição imposta às grandes manifestações.
1. Há quem se aventure a calcular as consequências previsíveis e imprevisíveis da guerra imposta pela covid-19 a curto, a médio e a longo prazo, em vidas humanas e na reinvenção de novos estilos de vida colectiva, a nível local e global. Não disponho nem dessa ciência nem desses poderes de adivinhação. Todos devemos ir aprendendo com quem sabe e a obedecer a quem legitimamente manda. Ninguém está dispensado de procurar aprender a descobrir novos modos de responder à pergunta fundamental da condição humana: em que posso e como posso ajudar?
Na comunicação que o primeiro-ministro fez ao país, além das medidas que tomou, em consonância com todos os partidos, tocou no essencial: “O primeiro dever de cada uma e de cada um de nós é cuidar do próximo. É o de evitar que, por negligência, por desconhecimento, ponhamos em risco a saúde do outro. Cada um de nós julga estar numa situação saudável, mas a verdade é que nenhum de nós sabe se não é portador de um vírus que, involuntariamente, está a passar a outro.”
Na situação presente, em muitos casos, a boa proximidade é a de encontrar modos e meios de proximidade sem o contacto físico. É um desafio à imaginação solidária que já teve e tem manifestações admiráveis. Os caprichos individuais, ou de grupo, que não têm em conta os avisos e as normas das autoridades legítimas são criminosos.
A religião bem entendida é aquela que sabe que o verdadeiro culto só se pode realizar em espírito e verdade. Como vimos na crónica do Domingo passado, não tem que estar sempre dependente de cerimónias litúrgicas. Segundo o Novo Testamento, o que há de mais sagrado para Deus é o ser humano.
No âmbito religioso, a imaginação não pode ficar paralisada pela restrição imposta às grandes manifestações. Foi Jesus que disse: quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo, já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta, reza em segredo ao teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há-de recompensar-te. Nas vossas orações, não sejais como os gentios, que usam de vãs repetições, porque pensam que, por muito falarem, serão atendidos. Não façais como eles, porque o vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes do vosso pedido [1].
Quando S. Lucas conta uma parábola magnífica sobre a necessidade da insistência na oração, também não é para convencer a Deus, mas por causa da necessidade que nós temos de nos abrirmos ao seu desejo [2].
Hoje, os diferentes meios de comunicação proporcionam possibilidades várias de acesso às expressões da fé cristã. Se, em condições normais, nada pode substituir a celebração comunitária da fé, esta também pressupõe outros modos de rezar.
2. Este período de quarentena – a quaresma inesperada – não pode servir para criar em nós uma religião intimista, uma mística de olhos fechados para as carências múltiplas das pessoas, sobretudo das mais sofredoras e isoladas. É bom não esquecer o aviso de S. Tiago: Se alguém se considera uma pessoa piedosa, mas não refreia a sua língua, enganando assim o seu coração, a sua religião é vã. A religião pura e sem mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste nisto: assistir os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e evitar a corrupção. A seguir, o mesmo Tiago torna-se ainda mais incisivo: Falai e procedei como pessoas que hão-de ser julgadas segundo a lei da liberdade. Porque quem não pratica a misericórdia será julgado sem misericórdia. Mas a misericórdia não teme o julgamento. De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras da fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta [3].
A modernidade é, antes de mais, a recusa de fazer intervir, nos nossos modos de compreensão da realidade e de acção, forças extra-humanas. Considera a religião alienante e de soluções ilusórias. É preciso alguma má vontade para chamar alienante ao citado texto de S. Tiago.
O filósofo agnóstico, J. Habermas, refere o último encontro com o filósofo ateu, H. Marcuse: ele estava na sala de cuidados intensivos num hospital de Frankfurt, rodeado de aparelhos dos dois lados da cama. Em conexão com a discussão de dois anos atrás, Marcuse disse-me: “Sabes? Agora sei em que é que se fundamentam os nossos juízos de valor mais elementares: na compaixão, no nosso sentimento pela dor dos outros.” [4]
3. O título desta crónica é imposto por uma narrativa do Evangelho de S. Lucas [5]. Jesus enviou em missão 72 discípulos. Regressaram entusiasmadíssimos com o espectáculo sobrenatural de que se sentiram actores. Jesus testemunha que, do ponto de vista deles, foi um grande êxito, mas não tinham descoberto o principal. Proclamaram o Reino de Deus com sinais e prodígios sem se darem conta do que há de essencial neste anúncio: estamos inscritos no coração de Deus. Só falta inscrever o próximo no nosso coração.
Um doutor da Lei, para se fazer interessante, perguntou a Jesus: mas quem é o meu próximo? A resposta foi dada com uma parábola que deixa muito mal a religião do templo de Jerusalém e muito bem a atitude de um herético samaritano:
Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancada, o abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: trata bem dele e o que gastares a mais pagar-te-ei quando voltar. Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores? Ele respondeu: o que usou de misericórdia para com ele. Disse-lhe Jesus: Vai e faz tu também o mesmo.
Esta ética samaritana, sem qualquer invocação religiosa, obriga-nos a todos, ontem e hoje.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Mt 6, 5-8
[2] Lc 11, 1-13
[3] Tg 1, 26-27; 2, 12-17
[4] Anselmo Borges, Deus Religiões (In)Felicidade, Gradiva, 2016, 30-31
[5] Lc 10, 17-37