publicada no semanário SOL
1. Julgávamo-nos omnipotentes e navegávamos na arrogância. De repente, os nossos planos ruíram e percebemos que não dominamos tudo e que precisamos de humildade. E somos empurrados para o mais urgente: pensar, porque demos conta da nossa fragilidade e somos confrontados com o medo, também por causa da ameaça da morte, que se tinha tornado distante e até um tabu.
Qual é o fundamento último e o sentido último da minha existência, da Humanidade, do universo? O que é que verdadeiramente vale? Estamos entregues à fatalidade, ao acaso, ou tudo assenta no Mistério último de bondade e de misericórdia, a que chamamos Deus, o Criador e Salvador?
2. É perante calamidades como a que estamos a viver que as pessoas revelam quem realmente são, no seu melhor e no seu pior.
Pude constatar em directo, num hospital, por causa de um irmão meu, doente oncológico, a entrega competente e carinhosa de médicos e enfermeiros. E sabe-se da oferta solidária para ir às compras para idosos ou pessoas frágeis. E um telefonema a oferecer ajuda e a avançar para ela, mesmo correndo riscos iminentes e graves. É o dever e a caridade verdadeira...
Mas também há quem se aproveite da fraqueza e da miséria. Os burlões. Até apareceram falsos padres que se ofereceram para ir a casa dar a comunhão ou ouvir em confissão pessoas idosas. E o presidente dos Estados Unidos queria ficar com o monopólio de uma futura vacina. E estúpidos perversos espalham, através dos média e das redes sociais, fake news e as suas alarvidades.
3. Quem ainda não tinha visto percebeu agora que vivemos num mundo global e que somos realmente interdependentes. Tomamos mais consciência disso da pior maneira: o vírus invisível e fatal viaja com as pessoas por todos os cantos do mundo. E somos mesmo frágeis e mortais e, desta vez, estamos todos expostos ao mesmo perigo: o vírus pode atingir a todos, sem excepção: presidentes, bispos, ministros, banqueiros, os mais ricos e, evidentemente, os mais pobres, sendo estes, aliás, os mais expostos... Vamos então consciencializar-nos da necessidade vital da solidariedade global, também na gravíssima crise económica e social já presente e que se agravará? Ou nos salvamos juntos ou nos afundamos todos.
4. As crises ligam-nos a oportunidades. Por exemplo, de quarentena, num retiro obrigatório ou auto-imposto, poderemos reencontrar o essencial esquecido. A importância da família e dos seus laços. Andamos sempre na vertigem da corrida, do imediatismo, da exterioridade, e agora poderemos reconciliar-nos com o tempo lento, da descida ao mais fundo de nós, pensar, ler ou reler obras essenciais. Habituados ao ruído, vamos revalorizar o silêncio. Com o alongar da crise, perceberemos como nos fazem falta os amigos e a alegria de convívios exaltantes, manifestações festivas de afectos. Mas é o sacrifício que se exige agora, para podermos depois festejar, vivos, a exaltação do reencontro. Também a festa do reencontro nas celebrações comunitárias da fé.
5. E a Igreja? Aqui, torna-se densa, no seu ensinamento, a pergunta: para que serve uma Igreja auto-referencial que só se interessa por si mesma, clerical, burocrática, com os seus privilégios, dogmas, mitras e chapéus cardinalícios? E percebemos a urgência da conversão a Jesus, que revelou que Deus é Pai e Mãe, que ama a todos, a começar pelos mais frágeis, pobres, abandonados. O Papa Francisco é exemplo vivo neste discipulado de Jesus. Por palavras e por obras. Num gesto de fé e solidariedade com todos, em tempos de desolação, foi rezar na igreja de São Marcelo, diante do Crucifixo milagroso, invocado na peste que assolou Roma no século XVI. “Pedi ao Senhor que ponha fim à epidemia”, disse ao La Repubblica, acrescentando: nestes dias duros, podemos voltar a descobrir “gestos de ternura, de afecto, de compaixão, por exemplo, um prato quente, um sorriso, uma chamada telefónica...”.
Anselmo Borges no SOL
Padre. Professor de Filosofia da Universidade de Coimbra