domingo, 23 de fevereiro de 2020

Acabar com o clericalismo

Crónica de Bento Domingues 
no PÚBLICO 

«A liturgia eucarística é obra de toda a comunidade 
e não apenas dos padres e dos bispos»

1. Para acabar com o clericalismo que o papa Francisco tantas vezes tem denunciado, importa desconstruir a eclesiologia que o produz e fundamenta. Sem esse trabalho, a concepção de Igreja do Direito canónico, que vigorou desde 1917 até 1983, desde Pio X até ao Vaticano II, reaparecerá quando menos se espera. Nessa eclesiologia o clero era tudo, tinha a primeira e a última palavra. Ao laicado restava-lhe ouvir, obedecer e sustentar o clero.
Nunca faltaram minorias para contestar esse culto da passividade perante uma hierarquia que se julgava omnisciente e omnipotente em nome de Deus [1].
Sem a desconstrução desse mundo de fantasias e práticas autoritárias, é impossível encontrar o que é essencial, o que é secundário e o que é de rejeitar na caminhada cristã. Sem essa redescoberta, continuaremos a construir sobre a areia, a alimentar ilusões com novas embalagens religiosas de produtos de fraca qualidade.
O Vaticano II iniciou, oficialmente, essa desconstrução, essa tentativa de encontro com o essencial da fé cristã. Ficou muito aquém do que era necessário e ainda nem sequer foi interiorizada a grandeza da sua mudança de perspectiva e de conteúdo.
No trabalho de desconstrução, D. António Ferreira Gomes, nas Cartas ao Papa [2]​, lembrou que um bispo português – Frei Bartolomeu dos Mártires – tinha proposto, no Concílio de Trento, uma eminentíssima e reverendíssima reforma dos cardeais. D. António disse que isso já não bastava. Toda a reforma será baldada, se não incluir o desaparecimento da função cardinalícia. Esta merece um bom funeral.
Depois de tanta exortação à reforma dos cardeais, da cúria, Bergoglio talvez venha a reconhecer a perspicácia da proposta radical do antigo bispo do Porto.
Santo Agostinho encontrou o rumo certo: “Atemoriza-me o que sou para vós; consola-me o que sou convosco. Pois para vós sou bispo; convosco sou cristão. Aquilo é um dever; isto, uma graça. O primeiro é um perigo; o segundo, a salvação.”
Tomás de Aquino, na Summa Theologiae [3], foi directo ao essencial, ao que ainda continua ignorado na prática pastoral, sacramental e litúrgica: “O que há de mais poderoso na lei do Novo Testamento, e no que consiste toda a sua energia, é a graça do Espírito Santo que é dada pela fé em Cristo. A Lei Nova é principalmente a graça do Espírito Santo.” Tudo o resto é só para apoiar e exprimir esta centralidade.
Ele próprio lembra a Segunda Carta aos Coríntios – A letra mata, o espírito vivifica –, assim como o comentário de Santo Agostinho: “Por letra entende-se todo o texto escrito, objectivamente existente fora de nós, inclusive os preceitos morais contidos no Evangelho; mataria também a própria letra do Evangelho se, interiormente, não estivesse presente a graça da fé.”
Segundo a Carta aos Hebreus, Jesus era em tudo semelhante aos seus irmãos para ser um sumo-sacerdote misericordioso e fiel no serviço de Deus [4]. “Estes irmãos de Cristo participam do seu sacerdócio. Como também diz o primeiro Papa, S. Pedro, “Vós sois linhagem escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Ele.” [5]
O culto dos irmãos de Cristo sacerdote foi expresso na Carta aos Romanos: “Exorto-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Seja este o vosso verdadeiro culto, o espiritual. ”[6]
Na Carta aos Gálatas, Paulo é ainda mais acutilante: “Todos vós sois filhos de Deus em Cristo Jesus, mediante a fé; pois todos os que fostes baptizados em Cristo revestistes-vos de Cristo mediante a fé. Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus.” [7]

2. Esta é a verdadeira eclesiologia de comunhão. A diferença natural entre homens e mulheres não é abolida no renascimento simbolizado pelo baptismo, mas em Cristo os homens não são mais cristãos do que as mulheres, não são mais sacerdotes do que as mulheres. No Novo Testamento, o vocabulário sacerdotal é exclusivo de Cristo e dos irmãos de Cristo, sejam homens, sejam mulheres.
Os ministérios, isto é, os serviços da comunidade cristã, não são designados como sacerdotais. Com o desenrolar da história da Igreja, confiscaram o vocabulário sacerdotal para os presbíteros e para os bispos. Na realidade, só podem ser designados como sacerdotes indirectamente: estão ao serviço do povo sacerdotal de Cristo.
A Lumen Gentium, n.º 10, reconhece “o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, embora se diferenciem essencialmente e não apenas em grau, ordenam-se mutuamente um ao outro; pois um e outro participam, a seu modo, do único sacerdócio de Cristo”.
A desgraça é que o segundo passou a ser o principal. E o principal, o sacerdócio comum dos fiéis, passou para segundo plano ou foi completamente esquecido. O clero confiscou a realidade sacerdotal de todo o povo cristão por causa de uma distinção real, mas formulada de forma ambígua. A liturgia eucarística é obra de toda a comunidade e não apenas dos padres e dos bispos. A todos pertence tornar visível, palpável, sensível a presença invisível de Cristo nas celebrações. Ninguém faz as vezes de Cristo, ninguém O substitui.

3. Como observa o grande eclesiólogo dominicano já citado, Hervé Legrand, “é difícil negar que, ao longo da história, se tornaram sobreavaliados teologicamente os efeitos da ordenação. Descreve-se o ‘sacerdote’ como outro Cristo, mediador entre Deus e os homens e ‘sacerdote’ para a eternidade”. Referindo-se a Jean-Jacques Olier, transcreve algo verdadeiramente delirante: os chamados “sacerdotes” são “as fontes fecundas inesgotáveis de todas as graças; tudo o que se realiza de santo, de grande e de divino, na Igreja, emana deles e opera pelo seu santo ministério. O sacerdote participa com o Pai e com o Filho no poder de enviar o Espírito Santo ao mundo”.
A Lumen Gentium tentou reequilibrar eclesiologias quase opostas. Esta reconstrução precisa de ser refeita. De outro modo, esbarramos com as dificuldades e as confusões que não foram superadas na Carta sobre o Sínodo da Amazónia. Temos de voltar a este assunto.

Frei Bento Domingues  no PÚBLICO

[1] Hervé Legrand, Abusos sexuales y clericalismo, in Selecciones de Teología, Vol. 58 (2019), nº 232, 362-370
[2] Cartas ao Papa, Figueirinhas, Porto , 2.ª edição 1987, Carta XII, 241-250
[3] I-II q. 106-108
[4] Hb 2, 14-18
[5] 1Pd 2, 9
[6] Rm 12, 1
[7] Gal 3, 27-28

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