domingo, 1 de dezembro de 2019

Francisco na Tailândia: o diálogo inter-religioso

Crónica de Anselmo Borges no DN

"O missionário não é um mercenário da fé nem um gerador de prosélitos. A evangelização não consiste em somar o número de membros nem aparecer como poderosos, mas em abrir portas para viver e partilhar o abraço, misericordioso e que cura, de Deus Pai, que nos faz família."

Papa Francisco 


Era um sonho desde os tempos da juventude: ser missionário no Japão. A vida não o permitiu, mas Francisco acabou por realizar em parte, na semana passada, esse sonho, ao visitar durante sete dias (19 a 26 de Novembro) a Tailândia e o Japão. A partir da Ásia, Francisco deixou mensagens decisivas para o mundo, acentuando, na Tailândia, a importância fundamental do diálogo inter-religioso, e, no Japão, condenando como crime imoral não só a guerra nuclear mas também a simples posse de armamento atómico.
Hoje, incidirei na mensagem a partir da Tailândia. O próprio Francisco, após o seu regresso a Roma, na passada quarta-feira, na audiência geral, resumiu a sua estada na Tailândia. "Na Tailândia, prestei homenagem à rica tradição espiritual e cultural do povo thai, o povo do belo sorriso. As pessoas estão sempre a sorrir. Animei o impulso pela harmonia entre as diversas componentes da nação, para que o desenvolvimento económico possa beneficiar a todos e se curem as feridas da exploração, especialmente de mulheres, de meninas e meninos, expostos à prostituição e ao tráfico. A religião budista é parte integrante da história e da vida deste povo, por isso fui visitar o Patriarca Supremo dos budistas, prosseguindo o caminho da estima recíproca, começada pelos meus predecessores, para que cresçam no mundo a compaixão e a fraternidade. Neste sentido, foi muito significativo o encontro ecuménico e inter-religioso, celebrado na maior universidade do país."
Há muitos anos que o famoso teólogo Hans Küng não se cansa de proclamar que "não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões" e não haverá paz entre as religiões sem conhecimento e reconhecimento mútuo e, consequentemente, diálogo.
Como não podia deixar de ser, Francisco fez do diálogo inter-religioso uma das marcas essenciais do seu pontificado, e isso ficou bem claro também nesta visita à Tailândia. Enquanto no sul do país um grave e sangrento conflito confronta separatistas muçulmanos e forças governamentais, insistiu na necessidade do diálogo inter-religioso como "serviço a favor da harmonia social na construção de sociedades justas, compassivas e inclusivas".
Logo no primeiro dia da sua visita oficial, num acontecimento histórico, encontrou-se no templo budista Wat Ratchabophit com o Patriarca Supremo Somdet Phra Maha Munivong, chefe do budismo oficial tailandês, começando por lembrar que o encontro se inscrevia "dentro do caminho de reconhecimento mútuo" iniciado pelos predecessores, e convidando a "aumentar não só o respeito mas também a amizade entre as nossas comunidades", 50 anos depois da primeira visita de um patriarca budista a Paulo VI, tendo João Paulo II visitado também aquele templo. "Pequenos passos que ajudam a testemunhar não só nas nossas comunidades, mas também no nosso mundo tão inclinado a gerar e a propagar divisões e exclusões, que a cultura do encontro é possível." Referiu os fundamentos do budismo, que fazem parte indelével da identidade dos tailandeses, com "o seu modo de reverenciar a vida e os seus anciãos, prosseguir um estilo de vida sóbrio baseado na contemplação, no desapego, no trabalho duro e na disciplina", permitindo definir a Tailândia como "o povo do sorriso". "Possibilidades como estas lembram-nos como é importante que as religiões se manifestem cada vez mais como faróis de esperança, promotoras e garantes de fraternidade", agradecendo ao povo tailandês que "desde a chegada do cristianismo à Tailândia, há uns quatro séculos e meio, os católicos, embora sendo um grupo minoritário, tenham desfrutado da liberdade na prática religiosa e durante muitos anos vivido em harmonia com os seus irmãos e irmãs budistas". Os responsáveis religiosos, lembrou, devem oferecer ao mundo "uma palavra de esperança capaz de alimentar e apoiar os que são sempre os mais afectados pelas divisões". Pelo seu lado, reiterou o seu "compromisso pessoal e o de toda a Igreja a favor do fortalecimento do diálogo aberto e respeitoso ao serviço da paz e do bem-estar deste povo". Assim, "poderemos estimular entre os fiéis das nossas religiões a elaboração de novas iniciativas de caridade, capazes de gerar e multiplicar projectos concretos no caminho da fraternidade, especialmente para os mais pobres e na relação com a nossa tão maltratada casa comum", para contribuir para "a construção de uma cultura da compaixão, da fraternidade e do encontro tanto aqui como noutras partes do mundo".
O Papa Francisco deu um exemplo concreto, visitando o Hospital Saint-Louis, fundado em 1898 por um bispo francês, que o confiou às Irmãs de São Paulo de Chartres, e que testemunha, explicou, "o precioso serviço que a Igreja oferece ao povo tailandês". Aí, deixou palavras de inexcedível empatia e humanidade. "Todos vós, membros desta comunidade terapêutica, sois discípulos missionários quando, olhando para um doente, aprendeis a chamá-lo pelo seu nome. Estai abertos ao imprevisível." "Realizais uma das maiores obras de misericórdia, uma vez que o vosso compromisso vai muito para lá de um simples e louvável exercício de medicina. Deveis ir para lá, abertos ao imprevisível." Deveis "receber e abraçar a vida conforme chega à urgência do hospital para ser atendida com piedade especial, que nasce do respeito e do amor à dignidade de todos os seres humanos". "Os vossos esforços e o trabalho das muitas instituições que representais são o testemunho vivo do cuidado e da atenção que estamos chamados a mostrar a todas as pessoas, especialmente aos idosos, aos jovens e aos mais vulneráveis." "Todos sabemos que a doença traz sempre consigo grandes interrogações. A nossa primeira reacção pode ser a de nos rebelarmos e até viver momentos de desconcerto e desolação. É o grito de dor, e é bom que assim seja: o próprio Jesus sofreu isso e fê-lo."
No termo da sua visita e antes de partir para o Japão, Francisco, evocando os desafios do país e do mundo perante responsáveis de diferentes religiões (budistas, hindus, muçulmanos, sikhs) e confissões cristãs, voltou a apelar à cooperação inter-religiosa. "Os rápidos progressos, prometendo aparentemente um mundo melhor, coexistem com a persistência trágica de conflitos: migrações, expatriações, fomes e guerras, sem contar a degradação e a destruição da nossa casa comum. Todas estas situações colocam-nos em alerta e lembram-nos de que nenhuma região nem nenhuma parte da nossa família humana pode considerar-se ou construir-se como uma entidade estranha ou imunizada em relação aos outros", impondo-se, portanto, a salvaguarda contra "a lógica do fechar-se em si mesmo" e a defesa da "lógica do encontro e do diálogo na reciprocidade". Em ordem à "solução dos conflitos", à "compreensão entre as pessoas" e à "salvaguarda da criação", "as religiões, sem por isso renunciarem às suas características essenciais e às suas diferenças próprias, têm um enorme contributo a dar e a oferecer". O Papa apelou aos responsáveis religiosos para que "construam fundamentos sólidos, ancorados no respeito e no reconhecimento da dignidade das pessoas, na promoção de um humanismo integral capaz de reconhecer e de reclamar a defesa da nossa casa comum".
Neste seu discurso, pronunciado na Universidade Chulalongkorn, do nome de um rei de Sião, primeiro chefe de Estado não cristão recebido, segundo o diário La Croix, no Vaticano em 1897, Francisco insistiu ainda na necessidade de "aceitar a exigência de defender a dignidade humana" e "respeitar o direito à liberdade religiosa". Numa Tailândia budista, onde os idosos são muito considerados, Francisco manifestou também a sua satisfação por ver "preservadas as raízes necessárias para que o vosso povo não desvaneça por detrás de slogans que acabam por esvaziar e hipotecar a alma das novas gerações. Continuai a fazer que os mais jovens descubram a bagagem cultural da sociedade em que vivem. Ajudai os jovens a descobrir a riqueza viva do passado e ir em busca das suas raízes, com vista ao seu crescimento e às escolhas que são chamados a fazer".
Neste contexto de diálogo inter-religioso, Francisco insistiu na sua mensagem constante: "O missionário não é um mercenário da fé nem um gerador de prosélitos. A evangelização não consiste em somar o número de membros nem aparecer como poderosos, mas em abrir portas para viver e partilhar o abraço, misericordioso e que cura, de Deus Pai, que nos faz família."

Anselmo Borges no DN 

Padre e professor de Filosofia. 

Escreve de acordo com a antiga ortografia.

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue