«Este ano, ainda continuará a existir o Natal dos ricos e super-ricos e o Natal dos pobres com algumas sobras dos ricos e da solidariedade dos que partilham a mesa com os que vivem sós. Conheci uma pessoa, era eu um adolescente, que me dizia: “Só me faltou o que não dei.”»
1. O Natal é uma canseira, um mundo de cuidados, dizia-me há dias uma zelosa mãe de família, com alguns tiques da queixosa Marta do Evangelho [1]. É preciso pensar em tudo para que ninguém fique melindrado. As sensibilidades das pessoas são muito diferentes e a persistência de ressentimentos imaginários pesa.
Prefiro não tocar em histórias natalícias de família porque, além de outros motivos, as concepções culturais de família tornaram-se tão fluidas e controversas que é aconselhável alguma discrição para não aumentar o número dos que se julgam excluídos. Gosto de dizer e de ouvir dizer família humana. Embora desagregada, ofendida e esquecida, é a nossa realidade mais antiga e mais profunda.
Os cuidados com o comércio do Natal estão, pelo contrário, bem entregues e actuam sempre por antecipação. Nesta quadra, é ele que inunda de publicidade os grandes meios de comunicação. A eficácia das homilias contra essa orquestração da onda consumista é muito duvidosa. Não estamos, no entanto, proibidos de tornar o Advento, liturgicamente programado, uma excelente oportunidade para meditar e descobrir que não estamos condenados a uma concepção cíclica do tempo, a um eterno retorno do mesmo, como os calendários festivos podem sugerir.
Jesus de Nazaré, na conversa nocturna com o velho e curioso Nicodemos, cortou com as fugas rabínicas à urgente e radical mudança de vida, mediante interpretações sem fim dos textos bíblicos. Caro Nicodemos, deixa-te de histórias, só tens uma saída para as tuas questões: nascer de novo! [2] S. Paulo manifestou-se completamente de acordo com o Nazareno. Com a idade, sob muitos aspectos, não há cosmética que nos valha, mas nem por isso nos devemos deixar abater: “Embora o homem exterior vá caminhando para a sua ruína, o homem interior renova-se dia a dia.” [3] Não é uma receita adicional às dos livrinhos sobre “como aprender a envelhecer”. Nas horas de depressão, quem acredita em Cristo verifica que nem rezar sabemos. Resta-nos a entrega ao seu Espírito de consolação e desafio. De facto, só Ele é entendido no mistério de Deus e no mistério que nós somos. Mas se Deus é por nós, quem estará contra nós? [4]
2. Este ano, ainda continuará a existir o Natal dos ricos e super ricos, da classe média alta, da classe média com apertos, o dos remediados e o Natal dos pobres com algumas sobras dos ricos e da solidariedade dos que partilham a mesa com os que vivem sós. Conheci uma pessoa, era eu um adolescente, que me dizia: “Só me faltou o que não dei.”
Os católicos continuam distribuídos por todas essas categorias. Mas também há muitos católicos e não católicos que não procuram esconder a injustiça com esmolas. Dentro e fora dos partidos políticos existem muitas pessoas que usam as suas capacidades e competências para criar alternativas à dominação económica, política, cultural e religiosa. Esses são os filhos do Advento.
Eles sabem que os efeitos da publicidade não são inocentes. Fazem com que muitas pessoas se tornem infelizes por não terem acesso a tudo o que é proposto à imaginação. Algumas gastam o que têm e não têm para não se sentirem ainda mais infelizes com a sua condição precária. As gritantes desigualdades em muitos países, sem esquecer o nosso, em que poucos são donos de quase tudo e muitos carecem do indispensável, pode ser um bom tema de meditação, para cristãos e não cristãos, com a pergunta: como secar as raízes mais profundas da ganância que nos habita? Como semear nas famílias e nas escolas o gosto de desenvolver todas as suas possibilidades para se tornarem mais capazes de servir e não de dominar? Quem se prepara para uma carreira de serviço na profissão e na investigação?
Esta meditação vem proposta, neste primeiro Domingo do Advento, na leitura de um antigo e belo sonho do profeta Isaías: “O Senhor julgará as nações e dará as suas leis a muitos povos, os quais transformarão as suas espadas em relhas de arados e as suas lanças, em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra e não se adestrarão mais para a guerra.” [5]
3. O Papa foi, em missão de paz, à Tailândia e ao Japão. É fundamental ver como, milhares de anos depois, em Nagasáqui, transformou o sonho de Isaías num imperativo para o nosso tempo: “Aqui, nesta cidade, que é testemunha das catastróficas consequências humanitárias e ambientais dum ataque nuclear, nunca serão demais as tentativas de erguer a voz contra a corrida aos armamentos. Esta desperdiça recursos preciosos que poderiam, ao contrário, ser utilizados em benefício do desenvolvimento integral dos povos e na protecção do meio ambiente natural. No mundo actual, onde milhões de crianças e famílias vivem em condições desumanas, o dinheiro gasto e as fortunas obtidas no fabrico, modernização, manutenção e venda de armas, cada vez mais destrutivas, são um atentado contínuo que brada aos céus.” [6]
É um pecado nosso que se deve converter numa responsabilidade de todos. A ninguém é permitido dizer, sob o ponto de vista ético, isso não é comigo.
“Um mundo em paz, livre de armas nucleares, é aspiração de milhões de homens e mulheres em toda a Terra. Tornar realidade este ideal requer a participação de todos: pessoas, religiões, sociedade civil, Estados que possuem armas nucleares e os que não as possuem, os sectores militares e privados e as organizações internacionais. A nossa resposta à ameaça das armas nucleares deve ser colectiva e concertada, baseada na construção, árdua mas constante, duma confiança mútua que rompa a dinâmica de desconfiança que prevalece actualmente.” [7]
Os cuidados de Natal estão ligados à celebração de uma grande festa. Nenhuma austeridade a pode ignorar. O anúncio de uma grande alegria pertence aos chamados “Evangelhos da Infância”, ao Evangelho, pura e simplesmente. Fora da alegria não há salvação, mas donde nasce a alegria e de onde nasce a tristeza?
A uma oferta do céu deve corresponder uma tarefa da terra, nossa construção. Um dos cuidados a ter, que abordarei em próxima crónica, será, precisamente, o de não deixar entregue à ignorância esses contos maravilhosos, de S. Mateus e de S. Lucas, cheios de actualidade. A interpretação à letra, sobretudo de ordem biológica, tornou essas narrativas de Natal inacreditáveis e colocou sob suspeita o que encerram de mais belo.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Lc 10, 38-41
[2] Jo.3.1-11
[3] 2Co.4,16
[4] Rom 8,20-29
[5] Is 2,1-5
[6] Mensagem do Papa sobre as armas nucleares, Parque da Bomba Atómica (Nagasáqui), 24. 11. 2019
[7] Ibidem