Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO
(Foto da rede global) |
«No século II, a Carta a Diogneto mostra que os cristãos não se distinguindo dos outros – nem pela pátria, nem pela língua ou costumes – são, de facto, a alma do mundo!
Perante a violência e as catástrofes da queda do Império Romano, perguntavam a Sto Agostinho se não estaria a chegar o fim do mundo. Eis a resposta: não é o mundo que está a acabar, mas um mundo novo que quer nascer.
Saltemos para a actualidade. A primeira condição dos católicos, para realizarem a sua missão na linha do Papa Francisco, é a reforma da Igreja, do topo até à base. A segunda, é a união com todas as pessoas e organizações de boa vontade para salvar o Planeta, a Casa Comum [6]. Os católicos devem estar na primeira linha desta militância.»
1. A cegueira dos interesses destruidores da natureza não é incurável, mas exige um processo multifacetado de conversão que, por ondas sucessivas de militância, cada vez mais lúcida, desenvolva movimentações de solidariedade irrestrita na defesa duma ecologia integral. No universo, está tudo intimamente interligado. A cura deste género de cegueira não é fácil e nunca estará definitivamente resolvida, mas é o preço a pagar pela salvação daquilo que não tem preço [1].
Alguns meios de comunicação noticiaram que onze mil cientistas, incluindo biólogos e ambientalistas, divulgaram um novo estudo sobre o estado do clima, alertando para a “ameaça às sociedades humanas, ao seu bem-estar e à biodiversidade” que as alterações climáticas constituem. Sublinha a ineficácia dos planos existentes para combater a subida da temperatura na Terra.
A publicação deste relatório coincidiu com os quarenta anos da primeira Conferência Climática Mundial, que decorreu em Genebra (Suíça), em 1979, e reuniu cientistas de 50 nações. Nessa conferência já se alertava para as tendências alarmantes de eventuais alterações climáticas e para a necessidade urgente de as combater.
Desde então, alertas semelhantes reeditaram-se em todas as cimeiras sobre o clima, incluindo as realizadas no Rio de Janeiro (1992), Quioto (1997) e Paris (2015). Este último, o chamado “Acordo de Paris”, culminava os esforços e alertas dos últimos 40 anos, com os cientistas a manifestarem a esperança de que os governos, cidadãos e outros representantes dos povos tomem as medidas necessárias para reverter ou, pelo menos, evitar alterações potencialmente catastróficas.
O estudo referido apresenta-se com o prestígio de onze mil figuras do conhecimento científico, significando que não se trata apenas de uma simples corrente de opinião ou de recorrer a velhas ameaças míticas para acordar os crentes para o dever de cuidarem da Casa Comum, na expressão preferida do Papa Francisco [2].
É importante sublinhar que esse documento não é uma narrativa mítica. Mas os próprios mitos mesopotâmicos e bíblicos da “criação” do mundo não devem ser atirados para o caixote do lixo das velharias inúteis ou enganadoras. Não são mistificações.
O estudo e a interpretação da linguagem simbólica dos mitos podem libertar a sua imensa riqueza de significação humana e divina, a não confundir com a coisificação das leituras fundamentalistas que, em nome da verdade divina da letra, os torna absurdos. Os “credos” religiosos fora da interpretação simbólica – que não é arbitrária – tornam-se inacreditáveis e matam a fé dos que buscam a luz para sair das trevas da ignorância.
Os mitos dão que pensar e que agir. A sua ressonância poética semeia um imperativo ético contra as atitudes do deixa correr perante a destruição da beleza da terra.
A Bíblia não é uma colectânea de tratados científicos com assinatura divina. Quando é lida nesse registo, deixa mal a ciência e torna-se espiritualmente ridícula. É uma biblioteca de literatura religiosa. É como literatura, de vários jogos de linguagem, que as suas narrativas míticas devem ser lidas. Como literatura, as suas próprias contradições, sem moralismos, podem-nos ajudar a entender o mundo e a nós mesmos, nos labirintos dos nossos desejos e contraditórias paixões.
2. O conjunto dos livros bíblicos, ao contrário da literatura gnóstica, não abre com uma catástrofe inicial. O Génesis [3], mediante a ficção das origens, começa pelo futuro que se deseja, pela narrativa de um mundo ideal, um paraíso de delícias. Tudo muito bem organizado e exuberante com gente livre e feliz na guarda de um jardim. Havia lá de tudo e de tudo se podia comer excepto da árvore do conhecimento do bem e do mal, pois a terra da liberdade não era a terra da irresponsabilidade, do vale tudo. Esquecidos desse alerta, os seres humanos deixaram-se guiar por apetites desordenados e loucas miragens. São os seres humanos que, por culpa própria, se expulsam do paraíso e se perdem em guerras fratricidas, simbolizadas por Caim e Abel.
É nessa linha mítica que surge o dilúvio universal. Parece um mundo sem remédio. No entanto, a capacidade humana de resistência não está universalmente destruída. Noé é o herói que, numa Arca flutuante, salva a sobrevivência de todas as espécies.
Quando parecia que os seres humanos tinham, finalmente, ganho juízo, verificava-se que continuavam seduzidos por miragens, perdidos do sentido dos limites. A megalomania do desejo fantasia mundos estupidamente delirantes. O mito da torre de Babel e da confusão das línguas diz que só um Deus nos pode salvar da construção de um mundo concentracionário, onde são abolidas todas as diferenças e onde desaparecem as vozes discordantes.
Eis, a passos muito largos, a significação de onze capítulos do livro do Génesis, o livro da esperança no meio de pecados e catástrofes e salto para o Novo Testamento.
3. O primeiro escrito cristão é de S. Paulo [4], entusiasmado com o mundo novo que se revelou na ressurreição de Cristo. O que se podia esperar era a entrada universal nesse invisível paraíso refeito e perfeito, a realidade definitiva. No entanto, ao verificarem que os membros da comunidade continuavam a morrer, Paulo apressa-se a dizer que, tanto os que já morreram como os que ainda estão vivos, vivem da esperança que falta aos gentios: o encontro com o Ressuscitado. O imaginário desse encontro poderia sugerir que o fim do mundo estava para breve.
Na segunda Carta, sobre os iludidos pela proximidade do fim do mundo, que andavam entretidos a não fazer nada, apresenta uma solução: os que não querem trabalhar que não comam.
De facto, a vinda de Cristo não encerrou a história: a criação inteira geme e sofre as dores de parto até ao presente [5].
No século II, a Carta a Diogneto mostra que os cristãos não se distinguindo dos outros – nem pela pátria, nem pela língua ou costumes – são, de facto, a alma do mundo!
Perante a violência e as catástrofes da queda do Império Romano, perguntavam a Sto Agostinho se não estaria a chegar o fim do mundo. Eis a resposta: não é o mundo que está a acabar, mas um mundo novo que quer nascer.
Saltemos para a actualidade. A primeira condição dos católicos, para realizarem a sua missão na linha do Papa Francisco, é a reforma da Igreja, do topo até à base. A segunda, é a união com todas as pessoas e organizações de boa vontade para salvar o Planeta, a Casa Comum [6]. Os católicos devem estar na primeira linha desta militância.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
17. 11. 2019
[1] Cf. Rui Tavares, Há dinheiro para salvar o Planeta?; Vandana Shiva, entrevistada por Andrea Cunha Freitas, “Os novos gigantes digitais estão a minar as nossas mentes”, in PÚBLICO (13.11.2029).
[2] Cf. a Encíclica Laudato Sí
[3] Génesis 1 – 11.
[4] 1ª carta aos Tessalonicenses
[5] Romanos 8, 22-23
[6] Segundo o 7Margens, quatro dioceses norte americanas decidiram concretizar acções para combater as alterações climáticas.