sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Os livros são quase pessoas

Crónica de António Rego no "Correio da Manhã" - Folhas secas 



Os livros são quase pessoas. Não ouvem, nem veem, nem falam. Mas têm alma quase mais forte que a vida que em nós palpita. Melhor que nós compõem a eternidade. Fio onde subtilmente corre o nosso pensamento, tornam-se mais velozes que nós próprios. Empilhados em estantes parecem fúnebres, sequência de campas em fila de cemitério. Atravessamos as suas ruas sem dizer nem escutar palavras, levantam uma poeira que nos faz arder os olhos e perturba as aparências do nada que compõem os enigmas que se escondem nas suas páginas. Mas são uma cátedra, um púlpito, uma vida, um recheio interminável de saber, um amontoado de gerações, um ventre sereno da arte e do saber. Uma estrada aberta, plantada de mil plantas. 

É nos serenos silêncios 
que se escrevem 
os nossos melhores discursos 

Se entro pela estrada do digital, não vejo cruzes, tropeço na ramagem quase mais ruidosa que as folhas de Novembro, que se enrolam nos pés à passagem nos corredores da floresta ressequida. E todavia sinto que também nesse percurso há um diálogo, parecido com o discurso, que tanto mais se sente quanto maior é o silêncio. Até por vezes me parece ouvir a folhagem a dizer nomes vivos e até expressar ideias que nunca me haviam ocorrido.
Continuo o caminho sem destino certo. Mas as folhas secas que vou pisando parecem soletrar poemas ou entoar canções nunca ouvidas, compostas por algum poeta há muito sepultado. Olho em frente. Há caminhos estreitos a percorrer e silêncios a celebrar. Olho atrás e ao lado quase a desconfiar que alguém me segue. Apenas silêncio e daqueles que nada dizem. Por isso os meus passos são em tom de pergunta como se alguma vez o não tivessem sido. Não é o muito falar que estabelece o diálogo. Nem o muito ouvir que torna as coisas claras. É certamente a serenidade de espírito que entoa as melhores canções e nos recorda que nos serenos silêncios se escrevem os nossos melhores discursos. E se entrarmos na orquestra dos sons sentimos que os melhores brotam da humildade do silêncio. 

António Rego no "Correio da Manhã"

NOTA: Conheci o Pe. Rego desde que me envolvi, com entusiasmo, no jornalismo. Conversei com ele em vários encontros e apreciei o seu entusiasmo e saber, ao serviço da Igreja, nos programas televisivos de que ele era responsável. Espírito aberto, conhecimento do mundo jornalístico e homem culto no âmbito eclesial e para além dele estiveram na base da admiração que nutro por ele. 

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