«Certo empolamento dos “ministérios ordenados” na Igreja corre o perigo de fazer esquecer aquilo para que foram criados: o serviço de comunidades concretas que existem sempre em determinadas circunstâncias de tempo e lugar. Circunstâncias que de modo nenhum podem ser esquecidas nas estratégias e nas tácticas dos planos pastorais. As comunidades cristãs são constituídas por homens e mulheres na base de um único Baptismo.
Em toda a história da Igreja nunca existiu um Baptismo só para homens e outro só para mulheres. É o sacramento da incorporação no Espírito de Cristo. Todos, mulheres e homens, participam do mesmo sacerdócio, o sacerdócio de Cristo, em todas as suas dimensões.
São as mulheres e os homens renascidos no Baptismo – e que dele tomam consciência viva – os verdadeiros responsáveis do testemunho de Jesus de Nazaré, na sua vida pessoal e comunitária, assim como da promoção e organização dos serviços indispensáveis à expansão desse testemunho. Quando o fogo do Espírito é atiçado, esses serviços nascem e desenvolvem-se das formas mais inesperadas.»
1. No jornal imprescindível, 7Margens, António Marujo destacou o que considera uma pequena-grande revolução católica amazónica: a possibilidade de ordenar homens casados, um ministério próprio de mulheres dirigentes de comunidades cristãs, um rito litúrgico específico da Amazónia que incorpore a cultura local, a identificação da espiritualidade do “bem-viver” amazónico com as bem-aventuranças do Evangelho, a necessidade de escutar o “grito dos pobres” e dos povos amazónicos e, ainda, a proposta de criação de um fundo mundial, como forma de reparar a dívida para com a Amazónia, o aprofundamento do rosto “amazónico” do catolicismo local, que passe pela criação de uma universidade, e o alargamento de estruturas locais de participação, em que os indígenas e todos os crentes se sintam representados [1].
O documento final do Sínodo, votado e aprovado, já está em circulação. Falta ainda conhecer a interpretação que o Papa vai fazer da letra e do espírito desta assembleia e que terá também em conta as repercussões que teve nas comunidades católicas de todo o mundo.
Este sínodo esboçou uma viragem paradigmática que interessa a toda a Igreja. A especificidade da Amazónia não pode constituir um gueto eclesial, mas um acontecimento inspirador de imensas possibilidades adormecidas ou sufocadas pela rotina proverbial do sempre assim foi. É da natureza da Igreja ser a comunhão de igrejas diferentes [2]. Para que a unidade se fortaleça com a diversidade de carismas, é preciso saber discernir o que são dons do Espírito criador e o que resulta da disseminada vontade de dominação.Quem não se alegra com este acontecimento amazónico pode ser por dois motivos: por achar que ele foi longe demais ou por ter ficado aquém do que já era possível e necessário decidir. O que mais importa é que o diálogo entre as duas tendências continue a ser a alma do futuro.
2. Certo empolamento dos “ministérios ordenados” na Igreja corre o perigo de fazer esquecer aquilo para que foram criados: o serviço de comunidades concretas que existem sempre em determinadas circunstâncias de tempo e lugar. Circunstâncias que de modo nenhum podem ser esquecidas nas estratégias e nas tácticas dos planos pastorais. As comunidades cristãs são constituídas por homens e mulheres na base de um único Baptismo.
Em toda a história da Igreja nunca existiu um Baptismo só para homens e outro só para mulheres. É o sacramento da incorporação no Espírito de Cristo. Todos, mulheres e homens, participam do mesmo sacerdócio, o sacerdócio de Cristo, em todas as suas dimensões.
São as mulheres e os homens renascidos no Baptismo – e que dele tomam consciência viva – os verdadeiros responsáveis do testemunho de Jesus de Nazaré, na sua vida pessoal e comunitária, assim como da promoção e organização dos serviços indispensáveis à expansão desse testemunho. Quando o fogo do Espírito é atiçado, esses serviços nascem e desenvolvem-se das formas mais inesperadas.
A Eucaristia destina-se a alimentar esse espírito em todas as comunidades e em todos os tempo e lugares. Os chamados ministérios ordenados nascem, não para substituir a imaginação criadora de Deus, mas para que as comunidades não esqueçam o essencial que as constitui e as alimenta. Sem a graça divina, os sacramentos são gestos vazios, mas a presença amante de Deus não se esgota neles. Tem caminhos que só Ele conhece.
Se, como dissemos, não existe um Baptismo para mulheres e outro para homens, também não existe uma Eucaristia para homens e outra para mulheres. Na situação actual, só os varões ordenados podem presidir à celebração eucarística. Pergunto: em nome de que princípio cristão as mulheres, só por serem mulheres, não podem ser chamadas à ordenação presbiteral ou episcopal? Se a condição cristã é partilhada igualmente por mulheres e homens, por que razão as mulheres não podem ser ordenadas para presidir à celebração da Eucaristia, alimento essencial da vida e da missão das comunidades de baptizados em Cristo? Neste sentido, a solução que se procura para a Igreja da Amazónia é um grande passo para acabar com este tabu. Mas, infelizmente, é apenas um passo. Sabemos que a Igreja real é construída por mulheres e homens culturalmente situados no desenrolar da sua história de graça e pecado, de fidelidade e traição. As reformas podem ser verdadeiras ou falsas, como lembrou Yves Congar numa obra famosa [3]. Para ser verdadeira a reforma actual da Igreja, é preciso ter em conta a situação religiosa da mulher que Jesus encontrou, na sociedade e na religião em que foi educado, e a revolução que ele provocou.
Quando hoje se procura, e com razão, manifestar que não é possível continuar a manter a discriminação das mulheres nos serviços da Igreja quando elas já ocupam, ou tendem a ocupar, as posições que se julgavam exclusivas dos homens na sociedade, isto pode saber a oportunismo: as lideranças actuais da Igreja tendem a fazer algumas concessões para não perder as mulheres, que são as suas seguidoras mais fiéis. Que este acontecimento seja um dos sinais dos tempos, como lembrou o Papa João XXIII, é um facto de mudança cultural, mas julgo que é preciso recorrer, sobretudo, a argumentos internos, à verdade cristã da própria Igreja. Tem sido a hierarquia eclesiástica a esquecer aquilo que proclama de mais genuíno: na lei nova do Evangelho o que há de mais importante é a graça do Espírito Santo, tudo o resto é só para secundar esta realidade essencial [4].
3. Não se pode combater o carreirismo eclesiástico, como tem feito de forma incisiva o Papa Francisco, e encarar a ordenação presbiteral (ou como se diz impropriamente a ordenação sacerdotal) como uma subida de posto. A verdade é que todos os cristãos são sacerdotes pelo Baptismo. É a forma democrática do chamado sacerdócio comum.
Os ordenados padres ou bispos só podem ser chamados, de forma indirecta, sacerdotes porque recebem o encargo de zelar pela vitalidade da missão sacerdotal e profética de todo o povo cristão. É um precioso serviço que não pode ser confundido com mais um degrau de poder e prestígio na carreira eclesiástica, coroada pelo posto de cardeal e finalmente de Papa. O sacerdócio conferido pela graça do Baptismo, exercido em qualquer estado e vida humana, é o essencial da realidade da Igreja. Os ministérios presbiteral e episcopal, sejam de mulheres ou de homens, existem para servir o desenvolvimento da vida cristã de todos. Não é um privilégio nem um topo de carreira. Só por abuso se pode falar de carreira eclesiástica.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] 7Margens, 28.10.2019
[2] J.-M.-R. Tillard, Église d’Églises, Cerf, Paris, 1987
[3] Yves Congar, Vraie et fausse réforme dans l’Eglise, Cerf, Paris, 1950
[4] Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I-II, q. 106, a. 1.