segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Estudar antes de pregar


"Os tagarelas falam antes de pensar, 
umas vezes arrependem-se disso, outras não"

1. Em Serralves, no passado dia 19, fui convidado a participar numa conferência com Lídia Jorge, sobre O pensamento como pré-escrita. A moderadora, Luísa Meireles, lembrou que o assunto envolve múltiplas vertentes – literárias, filosóficas, religiosas, semânticas, etc. – com a liberdade de tudo o que cada um quisesse abordar. A conferência foi aberta por Paulo Mendes Pinto e pela música de Pedro Abrunhosa. Não me pertence, a mim, fazer qualquer juízo sobre o que ali aconteceu.
Escrever, escrevo, mas não sou escritor nem ficaria infeliz se nada tivesse escrito. Tive de escrever, no âmbito da teologia, muitos textos que me pediram para várias revistas ou de colaboração em obras colectivas, assim como introduções e prefácios sem conta. Fui solicitado por muitas instituições culturais do país, para conferências e debates sobre A Religião dos Portugueses, publicada em 1988, corrigida e aumentada na reedição de 2018, organizada por António Marujo e Maria Julieta Mendes Dias. Desde os inícios do PÚBLICO, fui convidado para escrever, ao Domingo, uma crónica que se tem mantido até hoje. Deu origem a vários livros, editados pela Figueirinhas e, depois, pela Temas e Debates.
Como disse, não sou escritor nem pertenço à Ordem dos Escritores, mas à Ordem dos Pregadores. É esse o sentido de acrescentar, à assinatura de tudo o que escrevo, O.P., o que ainda intriga alguns leitores.
Até ao século XIII, a Ordem dos Pregadores era identificada com a Ordem dos Bispos. Houve, por isso, resistências a dar este nome a uma Ordem Religiosa. A própria Bula pontifícia, que recomendava a Fundação de S. Domingos (1170-1221), foi corrigida de “Ordem dos que pregam” para Ordem dos Pregadores, aqueles que são “totalmente dedicados ao anúncio da palavra de Deus”.
Este acontecimento revelou-se extremamente fecundo. Fez com que muitos párocos e várias Congregações religiosas se convertessem a esta missão que é responsabilidade de toda a Igreja.
Porque será que a chamada Ordem dos Pregadores produziu, muito cedo, grandes teólogos escritores – basta pensar em Alberto Magno e Tomás de Aquino – e a escrita de místicos famosos, como Mestre Eckhart e Catarina de Sena?
Existe uma resposta óbvia, cunhada pela expressão: verba volant, scripta manent (as palavras voam, os escritos permanecem).
O acto de escrever é paradoxal: por um lado, procura reter a palavra para que ela atravesse o tempo e o espaço; por outro, ao ser fixada, por vários processos, em signos inalteráveis, perde a voz, o som, a vida. Ficam apenas letras, como traços da passagem de um vivente desaparecido. É uma morte à espera de leitores que a provoquem, a interroguem, a ressuscitem. Um escrito é um morto que pode sobreviver ao seu autor pela energia que transmitir. Um texto não fala se não for provocado.
Antes da palavra e antes da escrita existem várias formas de pensamento fecundado por experiências e emoções vitais. Costumamos dizer que, no começo, era a Palavra: Logos. Poder-se-ia dizer também que, no começo, era o Silêncio. Este, porém, está carregado de palavras. Só sabemos o que os outros pensam se eles o disserem ou escreverem, o resto é “adivinhação”. Diz-se que os tagarelas falam antes de pensar, umas vezes arrependem-se disso, outras não.
Seja como for, só se conhece a distinção entre ser humano e simples animal pela palavra. Existem animais que podem ser treinados para repetir o que os humanos lhes ensinam. Apesar de todo o animalismo reinante, ainda não se conhece nenhuma biblioteca organizada pelos habitantes dos jardins zoológicos ou da selva. Tudo o que é escrito sobre os animais é feito por uns animais que falam e escrevem, organizando sistemas de signos convencionais, em línguas muito diferentes e em registos linguísticos muito diversos.

2. Não sei o que se passa com os escritores e artistas criativos antes da obra que colocam ao nosso dispor. Sei o que muitos deles disseram. No campo da teologia, conheço a recomendação de S. Pedro: estai sempre prontos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la pede; fazei-o, porém, com mansidão e respeito [1]. Não é uma tarefa especializada. É a situação para a qual todo o cristão se deve preparar.
Um pregador, aquele que faz da sua vida o testemunho do Evangelho, não se deveria atrever a pregar sem perguntar, primeiro, se recebeu a graça da pregação, graça do Espírito Santo, o único verdadeiramente entendido no que a Deus diz respeito [2]. A seguir, pertence-lhe estudar. O conhecimento por afinidade espiritual não dispensa as filosofias e as diversas ciências, pois tem de mostrar como é que é verdade aquilo que confessa, na fé, ser verdade [3]. Não basta a ortodoxia do Credo. A sua repetição não produz saber. Sem a pergunta essencial, fica a cabeça vazia. Tem de investigar, cogitar, contemplar fervorosamente, antes de falar, pregar ou escrever.
Humberto de Romans, O.P. (ca. 1200 -1277) [4] observou: foi com a Ordem dos Pregadores que, pela primeira vez, estudo e vida religiosa se uniram, numa união sempre frágil que precisa de ser assumida, diariamente, como tarefa prioritária.
Acerca da teologia, Bento XVI recordou uma anedota dos seus primeiros anos como professor na Universidade de Bonn: em cada semestre, havia um dia académico, no qual os professores de todas as Faculdades se apresentavam aos alunos. Nessa altura, a Universidade sentia-se orgulhosa das suas duas Faculdades de Teologia (uma católica e outra protestante), ainda que nem todos os professores partilhassem a fé cristã. Esta situação não se alterou mesmo quando, em certa ocasião, um dos professores tivesse dito que, nessa Universidade, havia algo de estranho, pois tinha duas Faculdades que se ocupavam de algo que não existia: Deus.
Desde a Idade Média, o mundo cultural mudou muito. Nessa altura, o pregador tinha de estar preparado não só para testemunhar Aquele em quem acreditava, mas para dialogar com os judeus e os muçulmanos. Hoje, o diálogo inter-religioso é muito mais vasto e não pode esquecer os agnósticos, os ateus e os indiferentes.

3. O catolicismo convencional gera um pensamento rotineiro que não se deixa interrogar nem pode questionar o status quo da vida da Igreja nas homilias, na administração dos sacramentos, na catequese, etc. etc.. É o maior obstáculo à nova e antiga evangelização.
Veio o Papa Francisco e desconstruiu esse mundo convencional e, daí o grito: ai que ele está a dar cabo da Igreja na sua vida interna e na sua relação com o mundo. É verdade! O vinho novo da sua intervenção, pelo exemplo e pela palavra, rebenta com os odres velhos do conformismo.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] 1Pd 3, 15-16
[2] Rm 8, 23-27
[3] S. Tomás, Questiones Quodlibetales, 4. q. 9. a. 3.
[4] A Pregação, Tenacitas, 2012

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue