"Os tagarelas falam antes de pensar,
umas vezes arrependem-se disso, outras não"
1. Em Serralves, no passado dia 19, fui convidado a participar numa conferência com Lídia Jorge, sobre O pensamento como pré-escrita. A moderadora, Luísa Meireles, lembrou que o assunto envolve múltiplas vertentes – literárias, filosóficas, religiosas, semânticas, etc. – com a liberdade de tudo o que cada um quisesse abordar. A conferência foi aberta por Paulo Mendes Pinto e pela música de Pedro Abrunhosa. Não me pertence, a mim, fazer qualquer juízo sobre o que ali aconteceu.
Escrever, escrevo, mas não sou escritor nem ficaria infeliz se nada tivesse escrito. Tive de escrever, no âmbito da teologia, muitos textos que me pediram para várias revistas ou de colaboração em obras colectivas, assim como introduções e prefácios sem conta. Fui solicitado por muitas instituições culturais do país, para conferências e debates sobre A Religião dos Portugueses, publicada em 1988, corrigida e aumentada na reedição de 2018, organizada por António Marujo e Maria Julieta Mendes Dias. Desde os inícios do PÚBLICO, fui convidado para escrever, ao Domingo, uma crónica que se tem mantido até hoje. Deu origem a vários livros, editados pela Figueirinhas e, depois, pela Temas e Debates.
Como disse, não sou escritor nem pertenço à Ordem dos Escritores, mas à Ordem dos Pregadores. É esse o sentido de acrescentar, à assinatura de tudo o que escrevo, O.P., o que ainda intriga alguns leitores.
Até ao século XIII, a Ordem dos Pregadores era identificada com a Ordem dos Bispos. Houve, por isso, resistências a dar este nome a uma Ordem Religiosa. A própria Bula pontifícia, que recomendava a Fundação de S. Domingos (1170-1221), foi corrigida de “Ordem dos que pregam” para Ordem dos Pregadores, aqueles que são “totalmente dedicados ao anúncio da palavra de Deus”.
Este acontecimento revelou-se extremamente fecundo. Fez com que muitos párocos e várias Congregações religiosas se convertessem a esta missão que é responsabilidade de toda a Igreja.
Porque será que a chamada Ordem dos Pregadores produziu, muito cedo, grandes teólogos escritores – basta pensar em Alberto Magno e Tomás de Aquino – e a escrita de místicos famosos, como Mestre Eckhart e Catarina de Sena?
Existe uma resposta óbvia, cunhada pela expressão: verba volant, scripta manent (as palavras voam, os escritos permanecem).
O acto de escrever é paradoxal: por um lado, procura reter a palavra para que ela atravesse o tempo e o espaço; por outro, ao ser fixada, por vários processos, em signos inalteráveis, perde a voz, o som, a vida. Ficam apenas letras, como traços da passagem de um vivente desaparecido. É uma morte à espera de leitores que a provoquem, a interroguem, a ressuscitem. Um escrito é um morto que pode sobreviver ao seu autor pela energia que transmitir. Um texto não fala se não for provocado.
Antes da palavra e antes da escrita existem várias formas de pensamento fecundado por experiências e emoções vitais. Costumamos dizer que, no começo, era a Palavra: Logos. Poder-se-ia dizer também que, no começo, era o Silêncio. Este, porém, está carregado de palavras. Só sabemos o que os outros pensam se eles o disserem ou escreverem, o resto é “adivinhação”. Diz-se que os tagarelas falam antes de pensar, umas vezes arrependem-se disso, outras não.
Seja como for, só se conhece a distinção entre ser humano e simples animal pela palavra. Existem animais que podem ser treinados para repetir o que os humanos lhes ensinam. Apesar de todo o animalismo reinante, ainda não se conhece nenhuma biblioteca organizada pelos habitantes dos jardins zoológicos ou da selva. Tudo o que é escrito sobre os animais é feito por uns animais que falam e escrevem, organizando sistemas de signos convencionais, em línguas muito diferentes e em registos linguísticos muito diversos.
2. Não sei o que se passa com os escritores e artistas criativos antes da obra que colocam ao nosso dispor. Sei o que muitos deles disseram. No campo da teologia, conheço a recomendação de S. Pedro: estai sempre prontos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la pede; fazei-o, porém, com mansidão e respeito [1]. Não é uma tarefa especializada. É a situação para a qual todo o cristão se deve preparar.
Um pregador, aquele que faz da sua vida o testemunho do Evangelho, não se deveria atrever a pregar sem perguntar, primeiro, se recebeu a graça da pregação, graça do Espírito Santo, o único verdadeiramente entendido no que a Deus diz respeito [2]. A seguir, pertence-lhe estudar. O conhecimento por afinidade espiritual não dispensa as filosofias e as diversas ciências, pois tem de mostrar como é que é verdade aquilo que confessa, na fé, ser verdade [3]. Não basta a ortodoxia do Credo. A sua repetição não produz saber. Sem a pergunta essencial, fica a cabeça vazia. Tem de investigar, cogitar, contemplar fervorosamente, antes de falar, pregar ou escrever.
Humberto de Romans, O.P. (ca. 1200 -1277) [4] observou: foi com a Ordem dos Pregadores que, pela primeira vez, estudo e vida religiosa se uniram, numa união sempre frágil que precisa de ser assumida, diariamente, como tarefa prioritária.
Acerca da teologia, Bento XVI recordou uma anedota dos seus primeiros anos como professor na Universidade de Bonn: em cada semestre, havia um dia académico, no qual os professores de todas as Faculdades se apresentavam aos alunos. Nessa altura, a Universidade sentia-se orgulhosa das suas duas Faculdades de Teologia (uma católica e outra protestante), ainda que nem todos os professores partilhassem a fé cristã. Esta situação não se alterou mesmo quando, em certa ocasião, um dos professores tivesse dito que, nessa Universidade, havia algo de estranho, pois tinha duas Faculdades que se ocupavam de algo que não existia: Deus.
Desde a Idade Média, o mundo cultural mudou muito. Nessa altura, o pregador tinha de estar preparado não só para testemunhar Aquele em quem acreditava, mas para dialogar com os judeus e os muçulmanos. Hoje, o diálogo inter-religioso é muito mais vasto e não pode esquecer os agnósticos, os ateus e os indiferentes.
3. O catolicismo convencional gera um pensamento rotineiro que não se deixa interrogar nem pode questionar o status quo da vida da Igreja nas homilias, na administração dos sacramentos, na catequese, etc. etc.. É o maior obstáculo à nova e antiga evangelização.
Veio o Papa Francisco e desconstruiu esse mundo convencional e, daí o grito: ai que ele está a dar cabo da Igreja na sua vida interna e na sua relação com o mundo. É verdade! O vinho novo da sua intervenção, pelo exemplo e pela palavra, rebenta com os odres velhos do conformismo.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] 1Pd 3, 15-16
[2] Rm 8, 23-27
[3] S. Tomás, Questiones Quodlibetales, 4. q. 9. a. 3.
[4] A Pregação, Tenacitas, 2012