Georgino Rocha |
Jesus vive intensamente a ceia de despedida que realiza com os discípulos, antes de livremente iniciar o processo que o leva à morte por crucificação. João, o discípulo amado e apóstolo narrador, descreve episódios únicos que nos podem aproximar dessa intensidade e ajudar a desvendar o “mundo íntimo” do Mestre disposto a amar até ao fim. Aconteça o que acontecer. Um destes episódios é o lava-pés, gesto familiar de quem vive para servir nas condições mais humildes e da forma mais pronta; gesto que Jesus explica dando-lhe o alcance pretendido: “Entendestes o que vos fiz? Sereis felizes se o puserdes em prática”.
Durante a ceia, Jesus comove-se profundamente, diz frases e faz gestos que lançam a inquietação nos comensais, incluindo Judas a quem chama amigo e exorta-o a fazer o que tinha planeado. Este obedecendo prontamente, toma o bocado do pão que estava a ser distribuído por Jesus e sai imediatamente. “Era noite” anota João, o evangelista, deixando em aberto a pluralidade de sentidos desta observação. A pressa e a noite deixam perceber o seu mundo interior, em que se cruzarão sentimentos opostos: As experiências felizes ocorridas na companhia de Jesus e a “pressão” do compromisso assumido perante os responsáveis “moíam e remoíam” na memória do seu coração. (Jo 13, 31-33a. 34-35)
Jesus, como havia feito após o lava-pés, dá largas ao que sente e dirige-se, antes de mais, a Deus que vê glorificado nesta hora, início de um longo processo de humilhações que culmina no Calvário. “O Evangelho mostra em estreita relação a saída de Judas do espaço comunitário e a glorificação de Jesus. O gesto da traição… é visto por Jesus no contexto da sua história com o Pai e, portanto, como sinal da sua glorificação. Mas é claro que a hora da sua glorificação não é suscitada por Judas com o seu gesto, mas pelo amor de Jesus que amou os seus até ao fim”. (Manicardi, comentário, p. 84)
Jesus liberta o coração e faz uma declaração que é louvor, garantia e mandamento. Louvor porque chegou a hora de ser glorificado, garantia de que o Pai também o será sem demora e mandamento de amor entre os discípulos. Liberta o coração e faz um belo ensinamento que nos deixa como credencial de que o seguimos fielmente.
As palavras de Jesus, uma espécie de cântico de alegria, atestam a boa consciência de Jesus que permanece sempre no amor mesmo quando tinha na mente a traição. E com a traição tudo o que se seguiria até à morte por crucificação no Calvário, morte vivida em total amor confiante.
E o autor citado afirma ainda: “A morte representada pelo ódio e pela vingança, pelo despeito e pela exclusão já foi vencida por Jesus ao amar o irmão que se tornou inimigo e enquanto ele é inimigo. A ressurreição será expressão da força vivificante do amor”.
Amar com o amor de Jesus é a força do agir cristão no mundo. Todas as outras forças de ação devem constituir vias acessíveis para quem quer ser fiel à mensagem e seguir o Mestre. Mas, infelizmente, o mundo oferece-nos um mostruário desolador, de competição e de morte. A Igreja, cuja missão é fomentar a civilização do amor, nem sempre o faz, mostrando realidades bem diversas, em vários períodos da história e algumas partes do mundo. Também a família que, a seu modo, constitui uma comunidade de amor e de vida. E para os cristãos igreja doméstica.
Encerra-se hoje a Semana de defesa da Vida que integrou o dia Internacional da Família. A Comissão Episcopal do Laicado e Família, na mensagem ‘Vida, futuro no presente’, vem recordar-nos que cada vida tem um passado, “repleto de vidas que a trouxeram ao presente, “que geram outras vidas que projetam o futuro”. E que “na vida de cada um, há o mistério de um passado e o mistério de um futuro, que se constrói na verdade do presente”.
Esta verdade está recheada do amor vivido por Jesus no rebaixamento e na glorificação, de que fala hoje o Evangelho. E “o amor que une entre si os cristãos será a grande força evangelizadora, será a narração, entre os homens, da presença viva e operante do Ressuscitado: «Por isto todos saberão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros»”.
Georgino Rocha