1. Escrevi aqui recentemente sobre as mulheres na Igreja, perguntando: “E se as mulheres fizessem greve na Igreja?” Uma mulher de alta estatura intelectual, espiritual e social comentou: “As igrejas ficavam vazias.”
Nem de propósito, mulheres católicas alemãs de várias dioceses acabam de boicotar durante uma semana o seu trabalho voluntário nas igrejas e fazer greve às Missas, para protestar contra o machismo e os abusos do clero. “Deploramos os casos conhecidos e desconhecidos de abuso e o seu encobrimento e ocultação por parte dos líderes da Igreja.” E exigem “o acesso das mulheres a todos os ministérios.” Facto é que, como disse Thomas Steinberg, presidente do Conselho Central de Católicos Alemães, “sem as mulheres nada acontece” e, portanto, é necessário seguir um “caminho sinodal” por parte da Igreja, operando as mudanças que se impõem. Aliás, já antes, católicas francesas tinham denunciado o machismo na Igreja, causa dos abusos contra mulheres e crianças: “na Igreja, todo o poder está nas mãos de homens solteiros, os únicos com capacidade para decidir, governar, ensinar, e que dizem ser mediadores da relação com Deus e com o sagrado.” E insistem: “Isto não pode continuar por mais tempo. Tem que mudar.”
2. As mulheres não podem ser discriminadas na Igreja. Jesus não as discriminou. A prova está em que teve discípulos e discípulas, como testemunham muitos passos dos Evangelhos, e Maria Madalena foi determinante no cristianismo. De facto, foi ela que, depois da crucifixão, quando tudo parecia ter sido o fim, reuniu outra vez os discípulos à volta da experiência avassaladora de fé de que o Jesus crucificado está vivo em Deus, que é Amor. Voltaram a reunir-se na fé em Jesus, o Vivente, e foram anunciar que Ele é o Messias, o enviado de Deus como “o Caminho, a Verdade e a Vida.” E testemunharam-no, dando a vida por isso. De tal modo Maria Madalena foi determinante que Santo Agostinho lhe chamou “a Apóstola dos Apóstolos”.
Também São Paulo fala com imenso respeito das suas colaboradoras. Por exemplo, na Carta aos Romanos, escreve: “Recomendo-vos a nossa irmã Febe, que também é diaconisa na igreja de Cêncreas, recebei-a no Senhor, de um modo digno dos santos. Saudai Trifena e Trifosa, que se afadigam pelo Senhor. Saudai Andrónico e Júnia, meus concidadãos e meus companheiros de prisão, que tão notáveis são entre os apóstolos e que, inclusivamente, se tornaram cristãos antes de mim”. Na Carta aos Gálatas, 3, 26-29, escreve: “É que todos vós sois filhos de Deus em Cristo Jesus, mediante a fé, pois todos os que fostes baptizados em Cristo revestistes-vos de Cristo mediante a fé. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus.” Portanto, na Igreja, e não só, há uma igualdade originária.
Jesus Cristo é, sem dúvida, quando se pensa a sério no que Ele fez, disse, foi e é, a figura mais determinante da História da Humanidade. São Paulo explicitou essa influência, a partir da sua própria experiência pessoal, avassaladora, que se traduz naquela conclusão: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher.” Que experiência foi essa, que o levou de perseguidor a Apóstolo, fazendo milhares e milhares de quilómetros, com os meios precários da altura, para anunciar o Evangelho? Há uma pergunta fundamental que Paulo faz: o que vale um morto?, o que vale um morto, concretamente um crucificado morto? Mas, ao fazer a experiência de fé de que esse Jesus crucificado está vivo em Deus, conclui que Deus o ressuscitou e, portanto, Ele vale para Deus, tem valor para Deus. E, se Jesus crucificado, morto, vale para Deus, como mostra a ressurreição, então todos valem, todos os homens e mulheres, independentemente do sexo, da etnia, da religião, da idade, da cor, valem para Deus, têm valor. Todos têm dignidade diante de Deus. Já não há escravo nem livre, nem judeu nem grego, nem homem nem mulher.
Alguém conhece revolução maior na História do mundo, de que lentamente se foi e vai tomando consciência, a ponto de se proclamar a dignidade inviolável de todas as pessoas, nomeadamente na Declaração Universal dos Direitos Humanos? As comunidades cristãs celebravam a Eucaristia, lembrando Jesus, a sua memória e reconheciam-no na partilha do pão, em refeições festivas, e, pela primeira vez, senhores e escravos, homens e mulheres, judeus e gregos se sentaram todos à mesma mesa. E quem presidia era o dono ou a dona da casa, que recebiam a comunidade. Com o tempo, a Igreja tornou-se uma estrutura de poder e aí tudo se transformou, chegando-se ao cúmulo daquelas celebrações da Ceia de Jesus que já nada têm de fraterno, pois mais parecem cerimónias das cortes imperiais. Naqueles longos pontificais com pompa imperial, adornos de ouro e pedras preciosas, vestimentas luxuosas que por vezes até rondam o ridículo, em que participam inclusivamente patifes e ladrões sem o mínimo propósito de emenda nem conversão, alguém se lembra da Última Ceia de Jesus? Quem preside? Os “senhores”, donos de Deus e do sagrado. Evidentemente, as mulheres foram ficando excluídas da presidência. E, lentamente, a revolução evangélica de Jesus, da radical igualdade de todos, teve de ser proclamada fora da Igreja oficial e ser-lhe imposta de fora, como aconteceu com as proclamações dos direitos humanos.
3. E Francisco? Ele está convencido de que “é necessário ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja. As mulheres formulam questões profundas que devemos enfrentar.” Disse às religiosas: “Não às criadas. Nenhuma de vós se faz freira para ser uma servente dos padres.” Em Julho de 2016, nomeou uma comissão igualitária de homens e mulheres para estudar o papel das mulheres na Igreja primitiva. A comissão terminou o seu trabalho sem acordo e ele acaba de comunicar no Encontro internacional das religiosas que, sobre o caso do diaconado, “temos de ver o que havia no início da Revelação. Se o Senhor não nos deu o ministério sacramental para as mulheres, a coisa não dá. Por isso, estamos a investigar a história”. Francisco não fechou a porta, mas ficou atado com a questão do diaconado como sacramento ou não para as mulheres.
Aqui precisamente, chegámos ao nervo do problema, problema nuclear da Igreja, porque está na base do clericalismo e do carreirismo, “a peste da Igreja”, na expressão de Francisco. Foi o maior exegeta católico do século XX, professor da Universidade de Tubinga, Herbert Haag, que me ensinou que Jesus não ordenou ninguém “in sacris”, nem homens nem mulheres. Na Igreja, há ministérios (Autrag), mas não há ordenação sacra (Weihe). Todo o povo de Deus pelo baptismo é Povo sacerdotal, mas não há sacerdotes. Toda a Igreja é ministerial, mas o Novo Testamento evitou a palavra hiereus (sacerdote) e, entre os carismas (dons do Espírito Santo), não se refere o sacerdócio.
Neste enquadramento, Pepe Mallo foi ao essencial, quando escreveu: “Porque é que se há-de sacramentalizar os ministérios? É evangélico sacralizar (ordenar ‘in sacris’) as pessoas? Não se deverá dissociar ‘ordenação’ e ministério’? É certo que Jesus não ordenou mulheres, mas também não ordenou homens, e, menos ainda, no sentido, aspecto e categorias de que desfrutam hoje os clérigos. Jesus não instituiu nenhum sacramento da ‘Ordem Sagrada’, nem para mulheres nem para homens. As funções de diáconos e diaconisas, bem como de presbíteros e bispos de que falam as Cartas no Novo Testamento eram pura e simplesmente ministérios da comunidade e para a comunidade. Não eram dignidades e privilégios de supremacia e domínio.” Na Igreja, tem de ser respeitada a dignidade de todos, mas não há dignidades nem dignitários.
Jesus dizia no Evangelho: “Tomai cuidado com os fariseus e os doutores da Lei, que gostam de exibir longas vestes, de ser cumprimentados nas praças, de ocupar os primeiros lugares nas sinagogas e nos banquetes. Vós sois todos irmãos.” Voltando às primeiras comunidades, é preciso reconhecer o sacerdócio de todos os baptizados, homens e mulheres, e, assim, proclamar e exigir a igual dignidade de todos. Mas, se as mulheres apenas reclamarem o poder dos homens na Igreja, então teremos o mal acrescentado: ao mal do clericalismo machista acrescentar-se-á o do feminiclericalismo. Julgo que é este o receio do Papa Francisco, quando critica algum feminismo como “machismo de saias”.
Anselmo Borges no DN