domingo, 14 de abril de 2019

Semana Santa? Que tenho eu a ver com isso?

Bento Domingues
"O projecto de Jesus surge como projecto de libertação, sobretudo dos doentes, dos pobres e das mulheres que não contavam para nada na sociedade do seu tempo" 

1. Creio que toda a gente tem muito a ver com a Semana Santa. Explico: os católicos fervorosos podem lamentar que, num país onde a maioria da população se exprime como católica (cerca de 80%), aproveite o Natal, a Páscoa, os Domingos e festas de santos para descanso, desporto, viagens, segundo as possibilidades económicas de cada um, e muito pouco para celebrar e aprofundar o conhecimento da sua própria fé. 
Esses católicos só têm razão até certo ponto. Não esqueçamos que o Novo Testamento estabeleceu uma grande polémica em torno da prática judaica sacralizada do sábado. Uma das narrativas míticas da criação está organizada para que, no sétimo dia, até Deus descanse [1]. Não podia haver táctica melhor do que esta: colocar o seu Deus como exemplo do que todos os crentes deviam cumprir. Se os textos do Novo Testamento são tão duros com essa sacralização, não era por causa de serem dias de descanso e oração. O que levou o judeu, Jesus de Nazaré, a provocar os seus concidadãos, fazendo o que estava proibido ao sábado, não era por desprezo do dia consagrado ao descanso, mas por terem transformado, numa prisão, um marco civilizacional da liberdade. 
O ser humano não pode ser um escravo do trabalho. Há muitas outras dimensões da vida que é preciso atender e às quais é preciso dar oportunidades. Não esqueçamos que o projecto de Jesus surge como projecto de libertação, sobretudo dos doentes, dos pobres e das mulheres que não contavam para nada na sociedade do seu tempo. 
Essa actividade de Jesus tinha, também, uma motivação teológica: o sábado não podia ser o dia de tolher a vida humana e as expressões da sua liberdade. Se era o dia de Deus, tinha de ser o melhor dia do ser humano, a festa da humanidade. Deus não podia tolerar que, em seu nome, se impedisse a alegria. 
Se Jesus escolhia, sobretudo, esse dia e a Sinagoga para as curas, não era para aborrecer os judeus mais ortodoxos e ritualistas. Era para que esse dia, ao fazer bem aos seres humanos, revelasse o que era a verdadeira glória de Deus, o seu autêntico louvor. 
Os fariseus insistiam em dizer que Jesus não podia ser um homem de Deus, pois não observava o sábado. O Quarto Evangelho, dito de S. João, vai ao ponto de colocar na boca do Nazareno algo de terrível, de blasfemo: o meu Pai trabalha sempre e eu também[2]. O texto acrescenta: por isto os judeus ainda mais o procuravam matar porque não só anulava o sábado, mas até se atrevia a chamar a Deus seu próprio pai, fazendo-se, assim, igual a Deus. Em S. Marcos, declara o sentido antropológico desta instituição religiosa: o sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano para o sábado[3]. Deus é glorificado na alegria das suas criaturas. 
A chamada Semana Santa é a transformação de uma semana criminosa, assassina, no testemunho maior da existência humana: Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem. Jesus, ao pedir vida para os que lhe davam a morte, ressuscitou-os na sua própria alma. 

2. António Marujo[4] fez uma magnífica reportagem sobre alguns assuntos debatidos no Terra Justa – Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade –, em Fafe (3-6 de Abril.2019), destacando a campanha pelo domingo livre de trabalho e pela saúde como direito humano. 
A presidente do Movimento Mundial de Trabalhadores Cristãos (MMTC), Fátima Almeida, defendeu que é preciso voltar a fazer campanha pelo domingo livre, para trabalhos e serviços que não são necessários nesse dia. Não se trata de fazer isso por causa da missa, mas “pelo encontro, pela família e os amigos, para dedicar tempo à cultura, à vida para além do trabalho, como diz o Papa”. 
Ao dizer isto, não é contra a missa, mas para destacar o valor humano de uma festa religiosa para religiosos e não religiosos. A verdadeira religião não abafa, pelo contrário, expande a vida e os verdadeiros valores de todos. Na interpretação cristã, é desta forma que se dá glória a Deus. 
Como já dissemos, o projecto de Jesus implicava a libertação da doença, o dom da saúde para todos. Ora, neste encontro, o dia 5, tinha sido dedicado à homenagem ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), através de dois dos seus rostos mais importantes: António Arnaut, que o criou há 40 anos e morreu em 2018, e Francisco George que, enquanto director-geral de Saúde, foi um dos seus principais responsáveis nestes 40 anos. Hoje, tudo mudou e as estatísticas colocaram Portugal entre os 12 melhores do mundo nos cuidados de saúde, mas o sistema sofre as dores do crescimento. Numa das Conversas, Francisco George destacou: “É preciso reduzir desigualdades, mas a principal desigualdade e o risco mais importante no acesso à saúde é a pobreza. Estamos muito melhor do que em 1974, mas é preciso distribuir melhor”. 

3. Com a exaltação do valor humano da religião autêntica e do alcance divino dos valores verdadeiramente humanos não se está a desvalorizar as expressões simbólicas e rituais das religiões. O que se pretende é que estas não estraguem o que pretendem e devem defender. As instituições religiosas não são por causa da religião, mas por causa de certas dimensões da vida humana que o quotidiano tende a esquecer. Voltamos à sentença de Cristo: o sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano para o sábado. 
Uma das grandes tarefas das lideranças da Igreja – bispos, párocos e congregações religiosas – consiste em ajudar as pessoas a perceber o que perdem se não aprofundarem o sentido das celebrações da fé e o que ganham quando são fiéis ao seu espírito e finalidade. 
Não adianta muito insistir no que está mandado ou proibido, quanto a práticas religiosas. Importa que se tornem apetecíveis pela sua beleza e sobriedade. Que falem à sensibilidade, ao coração e à inteligência. Que nos comovam. 
Quanto à Semana Santa, existem vários tipos de recuperação das tradições e da qualidade das celebrações marcadas pelas exigências do Vaticano II. O turismo religioso explora tradições. A liturgia viva procura uma linguagem de beleza que mostre a urgência de nascer de novo[5]. Só podemos saber se celebramos a Páscoa, se crescer em nós a vontade de servir aqueles que precisam da nossa dedicação: sabemos que passamos da morte para a vida porque amamos os irmãos[6]. 

Frei Bento Domingues, O.P., no Público de hoje 

[1] Gn 2, 1-3 
[2] Jo 5, 1-17 
[3] Mc 2, 27-28 
[4] 7Margens (jornal online), 07.Abril.2019 
[5] Jo 3 
[6] 1Jo 3, 14

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