sábado, 20 de abril de 2019

Anselmo Borges: Entre a Sexta-Feira Santa e a Páscoa: Sábado

Anselmo Borges

Crentes ou não crentes — quem o disse foi George Steiner — é em Sábado que vivemos. Que é que isto quer dizer? Todos, de um modo ou outro, em nós mesmos e no mundo, constatamos e vivemos a Sexta-Feira Santa do sofrimento, do horror, da violência, do silêncio e da noite, e todos, de um modo ou outro, de forma mais explícita ou menos explícita, mais consciente ou menos, é pelo Domingo, o Domingo da Páscoa, que suspiramos e esperamos, a Páscoa da salvação.

O que nestes dias os cristãos celebram é este Sábado, que pertence ao núcleo da existência cristã, como disse São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã também a vossa fé. Se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. Evidentemente, a ressurreição implica por si mesma uma meditação sobre a morte e o sentido último da existência. Uma meditação sobre o Sábado, no qual vivemos.

1. Na história gigantesca do universo, com 13.700 milhões de anos, o sinal distintivo de que há Homem, não já simplesmente algo, mas alguém, são os rituais funerários. A partir daí, já não estamos em presença de um animal qualquer, mas do ser humano, que sabe que sabe, que tem consciência de si, consciência de que é mortal, e que, nem que seja de modo confuso, espera para lá da morte. A consciência da morte e a esperança constituem, portanto, na História do mundo, uma novidade essencial e radical.
Perante a morte e a mortalidade, surge a interrogação fundamental, que está na base das artes, das filosofias, das religiões: o que é o Homem? Sabemos que somos mortais, mas ninguém sabe o que é morrer, ninguém sabe o que é estar morto, nem sequer para o próprio morto. Face à morte, a linguagem falha. Assim, dizemos, perante o cadáver do pai ou da mãe, de um amigo: ele/ela está aqui morto/morta. Ora, o que falta é precisamente o pai, a mãe, o amigo, pois o que ali está não passa de restos mortais e lixo biológico. Ou dizemos que os levamos à sua última morada. Ora, quem se atreveria a enterrar ou a cremar o pai, a mãe, um amigo? Também dizemos que os vamos visitar ao cemitério. Ora, nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém. O Evangelho é cru: nos cemitérios, só há ossos e podridão. Então, o que há realmente nos cemitérios, para serem considerados lugares sagrados, de tal modo que a violação de uma sepultura constitui, em todas as culturas, uma profanação e um crime nefando? O que há nos cemitérios não é senão essa pergunta radical: O que e o Homem?, o que é ser Homem?

Mas hoje a morte é tabu. Disso pura e simplesmente não se fala. É de mau tom chamar o tema à conversa. Se, tradicionalmente, tabu era o sexo, actualmente, a morte é que é o tabu. Mente-se às crianças, evita-se o luto, pois a grande mentira-ignorância das sociedades contemporâneas, desenvolvidas, técnicas, é a morte. Pela primeira vez na história da Humanidade, temos uma sociedade que se funda no tabu da morte, com todas as consequências. De facto, não se pense que a morte já não é problema. Pelo contrário, numa sociedade que se julga omnipotente e é poderosíssima nos meios, mas sem finalidades humanas, de tal modo a morte é problema, o único problema para o qual não tem solução que a solução é precisamente ignorá-lo, viver como se ele não existisse.

As razões do tabu são múltiplas. Fundamentalmente, o que se passou é que a razão esqueceu as suas múltiplas dimensões, ficando reduzida à razão instrumental, à eficiência, ao cálculo, à técnica, e o que importa é o sucesso imediato, o êxito, a juventude, o prazer, a eficácia, o consumismo sem fim. Por outro lado, vai-se impondo a desafeição face à religião, a fé vai rareando. Ora, perante a morte, o Homem faz a experiência de que não é omnipotente, de que não pertence a si mesmo, mas ao Mistério. Assim, perante a erosão da fé, cada vez se acredita menos na vida eterna. Vivemos, pois, numa sociedade sem Eternidade. Ora, sem eternidade, desfaz-se o tecido do tempo, que já não faz texto, pois só ficam instantes que se devoram, na imediatidade do gozo do momento, que se segue a outro momento, na voragem da repetição, do tédio e do sem sentido.
A crise do nosso tempo é uma crise global: financeira, económica, social, política, moral, religiosa. Mas é fundamentalmente uma crise da morte. Esta sociedade, para ser o que é, teve de fazer da morte tabu, esquecê-la.
Para reencontrar a sabedoria, impõe-se voltar ao pensamento sadio da morte. Não para envenenar a vida, mas, pelo contrário, para viver humanamente e em autenticidade. O pensamento sadio da morte dá-nos a consciência do limite, obrigando, portanto, a viver intensamente cada momento como único. A existência e as suas decisões não admitem adiamentos. Por outro lado, perante a morte, somos remetidos para a liberdade e a ética e a urgência da existência autêntica, pois o confronto com a morte leva à distinção entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o que verdadeiramente vale e o que não vale. A consciência da mortalidade desperta para a compaixão e a consciência da fraternidade humana: somos mortais; logo, somos irmãos. Quem quiser saber o que vale um homem e o que orienta verdadeiramente a sua vida pergunte-lhe o que faria, se soubesse que ia morrer no dia seguinte.

2. Como disse Ernst Bloch, filósofo marxista, ao mesmo tempo ateu e religioso — ele que esperava que a última música que ouvisse não fosse a das pazadas de terra na sepultura —, “o cristianismo, na concorrência com outros profetas da imortalidade e da sobrevivência, venceu em grande parte graças à proclamação de Cristo: ‘Eu sou a Ressurreição e a Vida’. Não propriamente graças ao Sermão da Montanha. No século I depois do acontecimento do Gólgota, a ressurreição foi referida ao Gólgota de uma forma inteiramente pessoal, de tal modo que pelo baptismo na morte de Cristo se experiencia a ressurreição com Ele. Imperava então um desespero apaixonado, que hoje nos parece incompreensível e representa um acentuado contraste com a nossa indiferença. Mas nada impede que dentro de cinquenta anos (porque não dentro de cinco?) volte essa neurose ou psicose de angústia da morte, de tipo metafísico, com a pergunta radical: para quê o esforço da nossa existência, se morremos completamente, vamos para a cova e, em última instância, não nos resta nada?”
Outro grande filósofo alemão, J. G. Fichte, escreveu que o ser humano não deixará facilmente de resistir a uma vida que consistisse em “eu comer e beber para apenas logo a seguir voltar a ter fome e sede e poder de novo comer e beber até que se abra debaixo dos meus pés o sepulcro que me devore e seja eu próprio alimento que brota do solo”; como poderei aceitar a ideia de que tudo gira à volta de “gerar seres semelhantes a mim, para que também eles comam e bebam e morram e deixem atrás de si outros seres que façam o mesmo que eu fiz? Para quê este círculo que gira sem cessar à volta de si?... Para quê este horror, que incessantemente se devora a si mesmo, para de novo poder gerar-se, gerando-se, para poder de novo devorar-se?”
Assim, para o ser humano é tão próprio saber que é mortal como esperar para lá da morte. Há aquelas perguntas in-finitas: Porque há algo e não nada? Quem sou? Para onde vou? Onde estarei, quando cá já não estiver, como inquiria Tolstoi? É insuportável andar, na vida, de sentido em sentido e, no fim, afundar-se no nada. Se tudo desembocasse no nada, que valor teria a distinção entre bem e mal, honestidade e desonestidade, honradez e mentira, verdade e falsidade, justiça e injustiça, já que, no fim, tudo se afundaria no nada e tudo seria o mesmo: precisamente nada?
Há aquela pergunta in-finita, que atravessa a História: quem fará justiça às vítimas inocentes? Há um clamor na História por causa da dívida para com as vítimas da injustiça e do horror. Quem pagará essa dívida? Quem pode fazer a reconciliação com tanta injustiça e sofrimento dos inocentes? Em diálogo com a Escola Crítica de Frankfurt, tão sensível às vítimas da História e à exigência de uma justiça universal cumprida, Bento XVI reconheceu que a necessidade individual da realização plena e da imortalidade do amor já é “um motivo importante para crer que o Homem está feito para a eternidade”, “mas só o reconhecimento de que a injustiça da História não pode de modo nenhum ter a última palavra” convence da necessidade da ressurreição dos mortos e da vida eterna. Perante a alternativa do absurdo ou do mistério, é sensato optar, com razões, pelo Mistério que salva, entregando-se-lhe confiadamente na fé, na esperança e no amor.
A curto, a médio, a longo prazo, todos foram estando mortos. A curto, a médio, a longo prazo, todos iremos, todos irão estando mortos, e, lá no final, só há uma alternativa, porque todos caminhamos para a eternidade: a eternidade do nada ou a eternidade da vida plena em Deus.
O cristianismo mantém-se ou afunda-se pela verdade e a fé ou não no Jesus que foi crucificado e que é agora, para sempre, o Vivente em Deus. Os discípulos que, como Jesus, confessavam cada dia, na Shemoné Eshré, a fé no “Deus que ressuscita os mortos“ e que tinham acreditado em Jesus como o Messias continuaram a crer nele, após a sua morte, uma morte que testemunhava o que foi o centro da sua vida e mensagem por palavras e obras até à morte: que Deus é Amor. Depois da crucifixão, reflectindo, aprofundaram a convicção avassaladora de fé de que Jesus não morreu para o nada, mas para o interior da vida de Deus, como promessa e esperança de vida plena e eterna para todos. O Deus que tudo criou por amor a partir do nada, a quem Jesus se dirigia como Abbá (Pai/Mãe), não é um Deus de mortos, mas de vivos. E disso deram testemunho até à morte, testemunho que chegou até nós.

Anselmo Borges no DN

Padre e professor de Filosofia

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue