sexta-feira, 15 de março de 2019

Georgino Rocha: A nova fisionomia de Jesus

«Escutar Jesus, reconhecendo que a razão humana apesar das suas aspirações legítimas, tem limites e pára às portas do mistério que revela outros horizontes da vida»

Após a crise de Cesareia de Filipe, fruto do diálogo tenso de Jesus com o grupo dos apóstolos, a relação entre eles fica abalada. A opção de Jesus é clara: avançar para Jerusalém, sofresse o que sofresse, mesmo a morte por condenação, enfrentar as autoridades religiosas e civis, reafirmar o amor ao Reino de Deus e à verdade do ser humano, provocar um novo estilo de vida em convivência solidária com todos. A dos discípulos, liderados por Pedro, também é clara: ver Jesus triunfar e ser senhor, partilhando com eles a sua vitória. A discórdia é total e mostra-se sobretudo nos meios a usar, nos passos a dar, no embate final a travar (de que será um símbolo o episódio da espada no Jardim das Oliveiras.
Passaram seis dias, informa Marcos, indicando o tempo decorrido para os discípulos “digerirem” o anúncio da opção de Jesus. Não será tanto a duração temporal que o relator quer realçar, mas a intensidade psicológica e espiritual da experiência vivida. Tempo suficiente para a crise ser digerida. Tempo que termina com um acontecimento excepcional, a Transfiguração, de que fala o evangelho de hoje (Lc 9, 28-36).
Jesus resolve antecipar um vislumbre da sua Ressurreição. Toma consigo Pedro, Tiago e João. Sobe à montanha, o Tabor. Enquanto ora, transfigura-se. Altera o aspecto do rosto e faz brilhar as vestes com brancura inigualável. Conversa com Elias e Moisés que, entretanto, lhe aparecem. É identificado por uma voz que se faz ouvir com autoridade: “Este é o Meu Filho amado. Escutai o que Ele diz!”.
Lucas, o narrador, faz notar o que acontece durante a oração. A relação de Jesus com Deus Pai é tão íntima e profunda que se torna visível no rosto e nas vestes. Simultaneamente aparecem Moisés e Elias, símbolos das escrituras litúrgicas, e conversam sobre o futuro próximo: a morte de Jesus. Fazem-se eco da tensão de Cesareia, rememoram o que está escrito nos livros sagrados, que destacam a figura do Messias e o que para ele converge. Sinalizada e anunciada esta missão, retiram-se, deixando o “espaço” todo a Jesus. De facto é o centro do processo de salvação que se visualiza no quotidiano da vida e nas celebrações sacramentais.
Do monte Tabor a Jerusalém há um longo percurso a fazer. Geográfico, mas sobretudo psicológico e espiritual. E em todos os passos é preciso escutar Jesus: nos silêncios e nas palavras, no olhar e no sorrir, no estar e no ausentar-se, nos gestos de proximidade e de entrega. O desenho do seu perfil perpassa por muitos traços que lhe dão um colorido que resplandece na cruz da ressurreição.
Tendo como referência o percurso dos discípulos, podemos apresentar alguns traços do nosso caminho espiritual, especialmente no tempo quaresmal. Escutar sempre Jesus, mas sobretudo quando temos o nosso espírito nublado pelas dúvidas e incertezas, pelas vozes gritantes na arena pública e pelos silêncios roedores das redes sociais, pelos impulsos decorrentes da natureza descontrolada e pelos sonhos cruzados da fantasia libertina. Ele é luz, paz, verdade (salmo)..
Escutar Jesus, reconhecendo que a razão humana apesar das suas aspirações legítimas, tem limites e pára às portas do mistério que revela outros horizontes da vida. Os discípulos discutiam o que queria dizer “ressuscitar dos mortos”. Esta discussão estará sempre em aberto. Jesus, porém, indica-nos o caminho para a resposta certa. Indica, percorre e faz, deixando a “porta” franqueada.
Escutar Jesus, valorizando a consciência humana de toda a pessoa, independentemente da condição social ou étnica, e ajudando-a a limpar de toda a interferência indevida para ser livre na sua opção pela verdade do ser e do agir. Assim a dignidade natural de cada um/a brilhará na sinfonia das criaturas e do universo. A melodia da cruz far-se-á ouvir de novo na confiança filial: “Tudo está consumado!”.
As monjas de São Bento de Montserrat fazem um bom resumo da mensagem do Evangelho da Transfiguração no seu powerpoint desta semana. Eis alguns pontos da sua reflexão. Com fé, podemos ver Jesus transfigurado em cada pessoa. A luz é sempre mais forte do que as nossas obscuridades. Transfigurar-nos é viver o Evangelho e ter olhos de profeta. Só viveremos a Transfiguração, se aprendermos a levar uma vida transformada: da indiferença à solidariedade e da amargura à alegria. Ver Jesus transfigurado é preparar o escândalo de o ver desfigurado na cruz. A nossa missão é descobrir e reconfigurar a sua nova fisionomia em cada rosto humano. É abraçar a paixão do amor como resposta à sua doação incondicional por nós. Há tanto a fazer por amor, não achas!

1 comentário:

  1. Querido Professor Fernando. Li com atenção e com o pobre discernimento com que a minha alma me ilude. Mas creio que, ao que alude, em missão própria, assumida, nunca por mim rebaixada ou denegrida, mas com uma tonelada de dúvida! Será alguma vez esclarecida?? Abraço apertado Querido Professor.

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