domingo, 24 de março de 2019

Bento Domingues: Deus não sabia o seu nome?

"O que importa é libertar a catequese,
as homilias, a teologia de rotinas
que impedem a alegria do Evangelho
para os dias de hoje."

1. Se Deus fala, é porque tem boca e diz coisas com sentido. Se tem boca, tem de ter um rosto. Se tem um rosto, tem uma cabeça. Quem já viu essa boca a pronunciar palavras? Numa reunião de catequese, a catequista viu-se surpreendida com essa pergunta de uma criança, já não tão criança. Ela própria ficou tão embaraçada que lhe disse: ó menina, isso não é pergunta que se faça, é uma maneira de dizer. A criança insistiu: mas Deus fala ou não fala?
No ambiente litúrgico e catequético, e até na linguagem corrente, os líderes das comunidades cristãs não se dão conta, pelo hábito de falar sem se explicarem, dando por sabido o que nem eles sabem, de que estão a preparar pessoas para confessar um credo e praticar rituais, mas sem a mínima inteligência do que dizem e fazem. Com o tempo, estão a preparar descrentes.
Já na Idade Média, Tomás de Aquino afirmava que, quando se pretende levar alguém à inteligência da raiz da verdade que confessa, tem muito que investigar para responder à pergunta: como é que é verdade aquilo que confessas ser verdade? Não basta recorrer a argumentos de autoridade. Nesse caso, o ouvinte fica sem ciência nenhuma e vai-se embora de cabeça vazia [1]. Não é boa recomendação a fé ignorante.
No âmbito religioso, estamos tão habituados a um certo uso da linguagem que julgamos estar sempre perante comunidades que merecem o elogio de S. Paulo: “Tendo recebido a palavra de Deus, que nós vos anunciámos, vós a acolhestes não como palavra de seres humanos, mas como ela é verdadeiramente: palavra de Deus, a qual também actua em vós que acreditais.” [2]
A criança a que nos referimos diria ao apóstolo: e como é que sabes que é palavra de Deus, se todas essas palavras são humanas, criadas por seres humanos?
Responder que, na Bíblia, o uso de gestos simbólicos, de parábolas e de metáforas é a forma de dizer o indizível não basta, pois, se é indizível, por que é que andam sempre a esforçar-se por dizer? Mas cuidado, esse é o belo ofício dos poetas.
Estamos perante um tema imenso, mas não nos podemos esquecer que Jesus também não confiou no amontoado de explicações dos sábios e entendidos que deixavam nas trevas os que mais precisavam de uma nova luz. Como filho de Deus, agradece o advento de uma nova época que varre séculos e séculos de ignorância, como já disse numa destas crónicas [3]. O que importa é libertar a catequese, as homilias, a teologia de rotinas que impedem a alegria do Evangelho para os dias de hoje, isto é, nas mudanças culturais. 

2. A liturgia de hoje oferece um dos textos bíblicos que mais tem dado que falar em todos os tempos [4]. O cenário é de uma experiência do sagrado, do intocável, do tremendo e fascinante [5].
Moisés quer aproximar-se de um espectáculo que o atrai, mas há uma voz que lhe diz: não te aproximes. Tira as sandálias dos pés porque o lugar que pisas é terra sagrada. E acrescentou, eu sou o Deus dos teus pais, Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacob. Com o receio de olhar para Deus, Moisés cobriu o rosto.
Mas Deus olhou para o povo oprimido e manifestou a Moisés as suas intenções libertadoras. No final, Moisés quer saber mais do que lhe está a ser comunicado e atreve-se: Eis que eu vou ter com os filhos de Israel e digo-lhes: o Deus dos vossos pais enviou-me a vós. Eles dir-me-ão: qual é o nome dele? Que lhes direi eu?
Resposta de Deus: Eu sou aquele que sou, yhwh (Iavé). Assim dirás aos filhos de Israel: Eu sou enviou-me a vós!
De facto, as frases Eu sou aquele que sou (‘ehyeh ‘axer ‘ehyeh) e Eu sou (‘ehyeh) são explicações etimológicas do tetragrama, yhwh. O verbo ‘ehyeh', ser/estar, tanto pode ser dito no presente como no futuro (eu sou-serei/eu estou-estarei).
Usado mais de 6800 vezes no AT, YHWH (Iavé), o chamado tetragrama (literalmente, quatro letras), é o mais frequente nome próprio do Deus Bíblico e está documentado em várias inscrições extra-bíblicas.
Como escreveu o grande exegeta, Francolino J. Gonçalves [6], judeus e cristãos crêem que as suas respectivas sagradas Escrituras são palavra de Deus. Os próprios muçulmanos reconhecem a origem divina das ditas Escrituras. Para o leitor que não usa o projector da fé, porque não o tem ou não se serve dele, Deus não é o único locutor na Bíblia. No entanto, é o seu protagonista. Deus desempenha na Bíblia um papel incomparavelmente mais importante do que qualquer uma outra das numerosíssimas personagens humanas. É sujeito de muitos discursos e objecto ou destinatário de muitos outros. É um dos narradores e, com muito mais frequência, objecto das narrativas.
Se, de facto, Deus fala na Bíblia de uma ponta a outra, só pode fazê-lo pela boca das pessoas humanas que nela intervêm, falando todas elas, explícita ou implicitamente, em seu nome. Para os leitores crentes, há uma sinergia entre Deus e os locutores humanos. A Bíblia é ao mesmo tempo palavra divina e palavra humana ou, melhor dito, palavra divina em palavras humanas. Nela está em acção o princípio da encarnação, que culmina no Verbo de Deus feito homem. Para os crentes, a Bíblia não é só palavra de Deus, mas também palavra sobre Deus. Directa ou indirectamente, ela fala de Deus de uma ponta a outra. Em geral, não fala de Deus por si mesmo, mas em relação com a criação e/ou com o seu povo.

3. Quando se diz, como no título desta crónica, Deus não sabia o seu nome, não é fazer dele um ignorante. Em certas culturas, conhecer o nome é tomar posse de uma pessoa, de um animal ou de uma coisa. Tive um professor de exegese que era alérgico à metafísica elaborada a partir da Bíblia. Não gostava nada de ouvir falar de metafísica sagrada do Êxodo, incluída na expressão, Eu sou.
A resposta que Moisés recebeu é uma forma de afirmação da transcendência divina. Deus não cabe em conceitos, em representações que, facilmente, resvalam para a idolatria e, por seu lado, a linguagem simbólica não diz, sugere. O célebre Mestre Eckhart rezava: Deus livra-me de Deus, de representações que pretendem substituí-lo. Outros místicos falam de Deus como nuvem luminosa, a luz misteriosa do mundo.
O Deus da Bíblia não é o Deus do silêncio nem o Deus das definições, mas precisamos de muito silêncio para O escutar nas suas mil vozes.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Quodlibetum Quartum, q.9, a. 3
[2] 1Ts 2, 13. 
[3] Lc 10, 17-24
[4] Ex 3, 1-15
[5] Cf. Rudolf Otto, O Sagrado, Edições 70, 1992
[6] Iavé, Deus de Justiça e de Bênção, ISTA 22 (2009), 107-152. Este longo texto esteve sempre presente nesta crónica.

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue