domingo, 31 de março de 2019

Anselmo Borges: O que queremos? Ser felizes. Decálogo para a felicidade

Anselmo Borges

1. Agora, há dias de tudo e para tudo. Certamente o dia mais universal é o dia 20 de Março, porque nele se celebra o Dia Mundial da Felicidade. Sim. O que é que verdadeiramente queremos? Não há dúvida sobre isso. Queremos todos ser felizes. O Papa Francisco acaba também de o reconhecer e dizer: “A busca da felicidade é algo comum em todas as pessoas, de todos os tempos e idades”, pois foi Deus que colocou “no coração de todo o homem e mulher um desejo irreprimível da felicidade, da plenitude”. “Os nossos corações estão inquietos e em contínua busca de um bem-estar que possa saciar a nossa sede de infinito”, desejo dAquele que nos criou e que é, Ele mesmo, o amor, a alegria, a paz, a verdade e a beleza. 

2. Precisamente por ocasião desse dia a celebrar a felicidade, Vatican News propôs, a partir de textos e declarações de Francisco, uma espécie de decálogo para a alegria e a felicidade. 

Ficam aí, em síntese, dez pontos sobre o tema, esse Decálogo. 

2. 1. O início da alegria é começar a pensar nos outros 

O caminho da felicidade começa pela necessidade de passar do egoísmo ao pensar nos outros. “Quando a vida interior se encerra nos próprios interesses”, sem “espaço para os outros”, não se goza da “doce alegria” do amor. Não se pode ser “feliz sozinho”. É necessário redescobrir a generosidade, porque, como disse São Paulo aos Coríntios, “Deus ama quem dá com alegria”. Jesus também disse: “Dá mais alegria dar do que receber”. “Se conseguir ajudar uma só pessoa que seja a viver melhor, isso já é suficiente para justificar o dom da minha vida”. 

2. 2. Afastar a melancolia 


Francisco gosta de citar o livro bíblico de Ben Sira: “Meu filho, se tens com quê, trata-te bem. Não te prives da felicidade presente, e não deixes perder nenhuma parcela de um legítimo desejo que se te apresente no caminho”. “Deus deseja a felicidade dos seus filhos também nesta terra, embora estejam chamados à plenitude eterna, porque Ele criou todas as coisas ‘para que’ todos possam desfrutá-las”. “O cristianismo não consiste, lembra, não consiste numa série de proibições que reprimem os nossos desejos de felicidade, mas num projecto de vida que pode fascinar os nossos corações”. Deus não é invejoso da nossa alegria e felicidade, o seu único interesse é que sejamos felizes, todos, para isso nos criou. Portanto, “quer que sejamos positivos” e não prisioneiros de “complicações intermináveis” e pensamentos negativos. Lá está o dito, que não se deve esquecer nunca: “Por cada minuto que nos zangamos, perdemos 60 segundos de felicidade”. 

2. 3. Não são o poder, o dinheiro ou os prazeres efémeros que dão alegria, mas o amor 

“A felicidade não é algo que se compra no supermercado, a felicidade vem apenas de amar e deixar-se amar”. “Quando procuramos o êxito, o prazer, o ter de forma egoísta e fazemos ídolos, também podemos experimentar momentos de intoxicação, uma falsa sensação de satisfação; mas, no final, convertemo-nos em escravos, nunca satisfeitos, vemo-nos obrigados a procurar mais e mais, sempre mais”. A alegria verdadeira “não vem das coisas, do ter; nasce do encontro, da relação com os outros, do sentir-se aceite, compreendido, amado e do aceitar, do compreender e do amar”. 

2. 4. Ter sentido de humor 

O caminho da alegria também tem um sentido do humor: saber como rir-se das coisas, dos outros e de si mesmo é profundamente humano, é uma atitude “próxima da graça”. O contrário de graça não é desgraça? É preciso dar particular importância à auto-ironia, para vencer a tentação do narcisismo: os narcisistas, diz Francisco, “olham-se ao espelho, compõem o cabelo”. Dá este conselho: quando te vires ao espelho, “ri-te de ti mesmo, far-te-á bem”. 

2. 5. Saber agradecer 

A alegria também consiste em poder ver os presentes que todos os dias a vida nos oferece. Estar vivo, a maravilha da beleza da vida e das coisas grandes e pequenas que preenchem os nossos dias. Por vezes, a tristeza está relacionada com a ingratidão, com “a incapacidade de reconhecer os dons de Deus”. É preciso seguir o exemplo de São Francisco de Assis, “capaz de sentir-se emocionado com gratidão diante de um pedaço de pão duro ou louvar a Deus com alegria pela simples brisa que acariciava o seu rosto”. Viver com alegria também é “a capacidade de saborear o essencial” com sobriedade e partilhar o que se tem, renovando “em cada dia o maravilhamento pela bondade das coisas, sem se afundar na opacidade do consumo voraz”. Um coração que sabe ver e como agradecer e louvar é um coração que sabe regozijar-se. 

2. 6. Saber perdoar e pedir perdão 

Num coração devastado pela ira, pelo ódio e pelo rancor, não há lugar para a felicidade. Quem não perdoa causa dano, prejudica-se, antes de mais, a si mesmo. O ódio é causa de tristeza e autodestruição. É preciso perdoar como Deus nos perdoa. Perdoar inclusivamente a si mesmo. Infelizmente, observa Francisco, por vezes “não somos conscientes do perdão de Deus”, e isto vê-se nas caras tristes dos cristãos. E recorda um filósofo que disse: “Os cristãos dizem que têm um Salvador; eu acreditarei, acreditarei no Salvador, quando tiverem o rosto de gente salva, de redimidos, felizes por estarem salvos”. O que faz o perdão? “Engrandece o coração, gera a partilha, dá serenidade e paz”. 

2. 7. A alegria do compromisso e o descanso 

Francisco convida a experienciar a alegria de trabalhar com outros e pelos outros na construção de um mundo mais justo, fraterno e livre. E, “contra o pensamento dominante”, apela para o espírito das Bem-aventuranças, que são “o caminho da verdadeira felicidade”. São felizes “os simples, os humildes que deixam espaço para Deus, que sabem chorar pelos outros e pelos seus erros, continuam tranquilos e serenos, lutam pelo justiça, são misericordiosos com todos, mantêm a pureza do coração, trabalham continuamente pela paz e permanecem na alegria, não odeiam e até, quando sofrem, respondem ao mal com o bem”. As Bem-aventuranças não são comportamentos e virtudes para heróis, mas um estilo de vida para aqueles que se reconhecem necessitados de Deus. Não perdem “nunca de vista o caminho de Jesus”: estão sempre com Ele no trabalho e sabem descansar com Ele para empreender o percurso com alegria. 

2. 8. Oração e fraternidade 

Pelo caminho da felicidade também há provações e fracassos que podem levar ao desalento. Contra isso, duas indicações, para não perder a esperança e não se render: perseverar na oração e nunca caminhar sozinho. “A oração muda a realidade, não o esqueçamos. Muda as coisas ou muda o nosso coração, mas muda sempre a situação. Rezar é agora a vitória contra a solidão e o desespero”. E Francisco adverte contra a tentação do individualismo: “Sim, podes ter êxito na vida, mas não, sem amor, sem companheiros, sem essa experiência tão bela que é o arriscar juntos. Não se pode caminhar sozinho”. 

2. 9. Abandonar-se nas mãos de Deus 

Na vida, há o tempo da cruz, da noite e da dúvida, momentos tenebrosos em que nos sentimos abandonados por Deus, e é nesse silêncio de Deus que precisamos ainda mais de nos abandonarmos confiadamente nas suas mãos. Aí, encontramos a paz, na certeza de que “as graças do Senhor não terminaram, as suas misericórdias não se esgotam”. Como diz Jesus: “A tua tristeza transformar-se-á em alegria ‘e’ ninguém poderá tirar-te a tua alegria”. “A Boa Nova é a alegria de um Pai que não quer que nem um dos seus filhos se perca”. 

2. 10. Saber que és amado 

A alegria autêntica provém do encontro com Jesus, de acreditar que Ele nos amou a ponto de dar a sua vida por nós. Fonte da alegria verdadeira é saber que somos amados por Deus, que é Pai e Mãe. Fundamento inabalável da alegria é escutar Deus que nos diz: “Tu és importante para mim, amo-te, conto contigo”. Para Deus, “não somos números, mas pessoas” que Ele ama. “Nascemos para nunca morrer, nascemos para desfrutar eternamente da felicidade de Deus”. 

3. Este é o segredo do Papa Francisco: “Sou amado, logo existo”. Por isso, “não tem medo de nada”.
Aqui, permita-se-me uma confissão pessoal. Tentei um dia dizer isso numa palestra em Maputo: que valemos para Deus, temos valor para Ele, e isto é que justifica a vida, na perspectiva da doutrina célebre da justificação em Lutero. Vim depois a saber que um moçambicano tinha feito uma caminhada de mais de 10 quilómetros a pé, para ir dizer a uma irmã: “Sabes? Agora percebi: valemos para Deus, temos valor para Ele. Esta é a fonte da nossa alegria. Tinha de vir dizer-to.”

Anselmo Borges
no DN

Padre e Professor de Filosofia 

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