Georgino Rocha |
"Amar o inimigo, não é antes de mais uma disposição afectiva, mas gestos e actos de amor que respondam a gestos de ódio, perseguições, calúnia, pretensões."
Jesus quer que os discípulos entendam o alcance das bem-aventuranças apresentadas na planície, após a descida da montanha. Por isso, continua o discurso, dando exemplos acessíveis da vida quotidiana e recorrendo a contraste. Por isso, usa uma linguagem simples e acessível, interpelante e radical. Linguagem em que sobressai, por um lado, o realismo das relações humanas, sobretudo nos seus dramas de violência e ódio, e por outro, o proceder misericordioso de Deus, generoso e pronto para o perdão. E Jesus adianta uma sentença com sabor a promessa a quem seguir o caminho das bem-aventuranças: “Será grande a vossa recompensa e sereis filhos do Altíssimo“. Os discípulos acolhem a novidade proclamada, exultam pelo futuro anunciado e sentem, com certeza, a exigência humana do que lhes é encomendado.
Lucas, no relato que faz, junta uma série de sentenças de grande alcance libertador. (Lc 6, 27-38). Manicardi, no seu comentário, p 106, afirma que “no nosso quotidiano, o inimigo pode ser o nosso grande mestre, porque pode tornarmos conscientes dos sentimentos tenebrosos que habitam o nosso coração e que não viriam ao de cima se tivéssemos sempre relações boas e serenas com todos. O inimigo revela a qualidade do nosso coração”. De facto, há ainda zonas da nossa mente imersas no inconsciente desconhecido, na escuridão, sujeitas a reacções primárias e descontroladas, dotadas de enorme potencial destrutivo. Com energias prontas a “disparar” sempre que são provocadas. E o discípulo está chamado a amar com todo o coração, com toda a alma, com todas as forças, e com toda a mente (cf Lc 10, 27).
Jesus fala do que vive e constitui a força dinâmica da sua missão. Vive a relação filial com Deus, Pai de misericórdia, que ama os humanos sem descriminação, mesmo sendo pecadores. Vive e admira a dignidade da vocação a que estamos chamados e da missão que nos é confiada. Vive e enobrece os gemidos das criaturas que também quer ver integrados na harmonia do universo. Vive e prolonga a sua acção salvadora no agir da Igreja chamada cada vez mais a ser fiel à mensagem evangélica e amiga da humanidade. Por esta sintonia com o projecto de Deus Pai, adopta um estilo de vida peculiar, toma atitudes singulares, proclama a novidade do Reino, constitui os discípulos suas testemunhas, faz-se amor de doação total. É, pode dizer-se, a partir deste quadro de referências que faz a leitura das situações humanas e exorta os discípulos a assumirem a atitude correspondente.
As sentenças de Lucas “caem” que nem bombas de destruição maciça aos ouvintes. Nem a sabedoria dos povos, nem as escolas dos mestres, designadamente bíblicos, tinham alcançado tal sabedoria, embora muito tivessem avançado. (E é bom que continuem os seus esforços para que a justiça seja o que deve ser em todas as áreas da vida humana). Constituem passos históricos “a lei de talião”: olho por olho e dente por dente; e a “regra de ouro”: fazei aos outros o que quereis que eles vos façam. A medida da reacção estava nas mãos do ser humano, O resto era fora de lei. E assim a violência continuava a minar as relações familiares e sociais. E com a violência está o cortejo dos seus rebentos, como em árvore de primavera.
Jesus quer cortar o mal pela raiz. Ainda que pareça “ingénuo” e supra-humano. Ele assim faz no seu agir normal. E no Calvário, deixa-nos o exemplo sublime, reconduzindo “à unidade os filhos de Deus que estavam dispersos” (Jo 11, 52). Lucas usa uma série de sentenças para indicar a novidade da atitude dos discípulos: Amai os inimigos, fazei o bem sem nada esperar em troca, bendizei os que vos amaldiçoam, rezai por quem vos injuria, perdoai. Assim procedeu Jesus que fez brilhar o jeito de ser Deus, Pai de misericórdia. Assim agiu David perseguido por Saúl, como nos lembra a primeira leitura. Assim agiram discípulos de todas as condições sociais ao longo da história. Com alguma frequência, podemos ver cristãos a ser martirizados, hoje, por ódio à fé em Jesus Cristo e aos seus símbolos.
Amar o inimigo, não é antes de mais uma disposição afectiva, mas gestos e actos de amor que respondam a gestos de ódio, perseguições, calúnia, pretensões. “Isto exige uma disciplina do coração, uma ascese da vontade”. E Manicardi destaca a oração que nos faz ver o inimigo com os olhos de Deus, na sua dignidade original, apesar do mal cometido; e reforça também a necessidade do trabalho interior e de fé que aviva em nós o amor com que somos amados e é superior à nossa maldade, ao nosso ódio.
João Paulo II protagonizou um acontecimento notável, após a lenta recuperação do atentado levado a cabo por Ali Agca, a 13 de Maio de 1981, em que ia sendo vítima na Praça de Roma, Quatro dias após a operação, afirma: “Rezo pelo irmão que fez o disparo e a quem sinceramente já perdoei”. E no primeiro discurso público relembra o perdão concedido. Em Maio de 1982, vem a Fátima agradecer a protecção de Nossa Senhora e oferecer-lhe a bala que ia sendo de morte e fica incrustada na coroa da Imagem Peregrina. Em Dezembro de 1983, vai à prisão Rebibbia, abraça-o, conversa com ele e dá-lhe o perdão anunciado.
“O Evangelho revoluciona o campo das relações humanas, mostrando que, numa sociedade justa e fraterna, as relações devem ser gratuitas, à semelhança do amor misericordioso do Pai”, conclui o comentário da Bíblia Pastoral.