Anselmo Borges |
Também fora de Lisboa ou do Porto, há iniciativas de relevância
mundial, que merecem a atenção de todos,
também como exemplo.
Hoje, quero felicitar, muito sinceramente, Fafe, na pessoa do seu ilustre Presidente, Raul Cunha. Porque Fafe já não é símbolo da “justiça de Fafe”. É símbolo da justiça, sim, mas da Terra Justa: Encontro internacional de Causas e Valores da Humanidade. Em Fafe, com inexcedível força e dignidade, celebra-se e combate-se pela cidadania universal, na liberdade, na justiça e na paz. Concretamente através dessa iniciativa anual, por onde têm passado grande figuras de renome, como António Guterres, o cardeal Maradiaga, Manuela Eanes, Eduardo Lourenço, Leonor Beleza, Artur Santos Silva... Ali têm sido homenageadas grandes instituições de cultura e solidariedade: a Fundação Calouste Gulbenkian; a Fundação António Champalimaud; o IAC (Instituto de Apoio à Criança); a Agenzia Habeshia, uma ONG fundamental para salvar vidas de refugiados; a UNICEF, uma agência das Nações Unidas, essencial na defesa dos direitos das crianças, tantas vezes espezinhados; Talitha Kum, a organização internacional que trabalha em rede contra o tráfico de pessoas... Deixo aí algumas chaves de leitura deste prestigiado Encontro Internacional.
Hoje, quero felicitar, muito sinceramente, Fafe, na pessoa do seu ilustre Presidente, Raul Cunha. Porque Fafe já não é símbolo da “justiça de Fafe”. É símbolo da justiça, sim, mas da Terra Justa: Encontro internacional de Causas e Valores da Humanidade. Em Fafe, com inexcedível força e dignidade, celebra-se e combate-se pela cidadania universal, na liberdade, na justiça e na paz. Concretamente através dessa iniciativa anual, por onde têm passado grande figuras de renome, como António Guterres, o cardeal Maradiaga, Manuela Eanes, Eduardo Lourenço, Leonor Beleza, Artur Santos Silva... Ali têm sido homenageadas grandes instituições de cultura e solidariedade: a Fundação Calouste Gulbenkian; a Fundação António Champalimaud; o IAC (Instituto de Apoio à Criança); a Agenzia Habeshia, uma ONG fundamental para salvar vidas de refugiados; a UNICEF, uma agência das Nações Unidas, essencial na defesa dos direitos das crianças, tantas vezes espezinhados; Talitha Kum, a organização internacional que trabalha em rede contra o tráfico de pessoas... Deixo aí algumas chaves de leitura deste prestigiado Encontro Internacional.
1. Terra Justa. Aí está uma utopia. Mas qual é a função da
utopia? Ela tem duas funções principais: constatar o ainda não do que deve ser
e, ao mesmo tempo, obrigar a lutar pela transformação do presente a caminho de um
futuro com a realização desse dever-ser.
2. Porquê? Porque se trata do imperativo de Causas e Valores
da Humanidade na Terra. E a Terra há só uma, uma só Terra: a Terra da Humanidade.
Há 13.700 milhões de anos foi o Big Bang. A Terra terá uns 5.000 milhões de
anos, a vida apareceu há uns 4.000 milhões de anos e, depois, a evolução
continuou e há uns 150 mil anos aparecemos nós, o Homo sapiens sapiens —
acrescento sempre: e demens demens (sapiente sapiente e demente demente). De
qualquer modo, é em nós, seres humanos, auto-conscientes, que este gigantesco
processo da evolução sabe de si e toma consciência de si.
O ser humano será sempre objecto de espanto para si próprio.
Talvez tenha sido Pascal quem de modo mais pertinente e lúcido “definiu” a
condição humana, ao escrever que se situa algures entre “o nada e o infinito”
(le néant et l’infini). Por isso, o ser humano é constitutivamente o ser da
pergunta e, de pergunta em pergunta, pergunta ao Infinito pelo Infinito, isto
é, de um modo ou outro, por Deus. É nesta sua condição que eu vejo o fundamento
da dignidade humana. De facto, se o ser humano, finito, frágil, débil, mortal, pergunta
ao Infinito pelo Infinito, é porque tem algo de infinito nele e, por isso, não
é da ordem das coisas, porque é fim. Na verdade, o que é que há para lá do
Infinito? A pessoa humana é fim e não meio. Como escreveu Kant, as coisas são
meios para outra coisa e, assim, têm um preço; o ser humano é fim e não meio e,
por isso, não tem preço, mas dignidade. Aí está, pois, a resposta para a
pergunta: Porquê o combate pela Terra Justa? Porque é o combate pela dignidade
de todas as pessoas.
3. Todos os seres humanos são dignos e a Terra é de todos. E
aqui coloca- se para todos um dos problemas maiores: a questão da ecologia, do
meio ambiente. E entra a política. Aristóteles definiu o ser humano como
“animal político”. Porquê? Porque, ao contrário dos outros animais, que
produzem sons, exprimindo prazer ou desprazer, o Homem tem linguagem duplamente
articulada, pela qual debate o bom e o mau, o justo e o injusto, o digno e o indigno.
Já se tornou claro que hoje, tomando consciência de que há
uma só Terra e uma só Humanidade, sendo todos igualmente dignos, a política tem
de ser global, tem de ter o horizonte de um mundo global. Só há, portanto,
futuro com uma Governança Global.
4. O ser humano é como uma árvore: somos enraizados, temos
um lugar de nascimento, uma história única, estamos situados, mas, ao mesmo
tempo, estamos abertos, ilimitadamente abertos aos outros, a todos os outros, a
possibilidades sem fim. Nesta abertura, mostra-se que somos constitutivamente
em relação. Fazemo-nos uns com os outros. A nossa relação é local e global,
nesse enraizamento de uma situação concreta e única e numa abertura sem fim.
5. Característica essencial do ser humano é a neotenia, isto
é, nascemos prematuros, sendo esta a condição de possibilidade de sermos o que
somos: humanos. Enquanto os outros animais já nascem feitos, o ser humano nasce
por fazer. Então, qual é a sua missão e tarefa? Fazer-se a si mesmo. Fazendo o
que fazemos, estamos sempre a fazer-nos a nós próprios, de tal modo que no fim
pode resultar uma obra de arte ou, permita-se a expressão, uma porcaria. Como
devemos fazer-nos? Uma vez que somos livres — auto-possuímo-nos e somos
responsáveis —, devemos fazer-nos bem. Concretamente, fazermo-nos com a
interligação da bondade e da razão. De facto, a bondade sozinha não abre
horizontes e pode não abrir caminhos; a razão sozinha pode ser cruel. Da
conexão da razão e da bondade resultará certamente uma Humanidade boa, justa,
livre e a viver em paz.
6. Já não há Deus? Deus, ao contrário do que se pensa e diz,
existe, o que se passa é que, como reflectiu o filósofo G. Agamben, tornou-se
Dinheiro. E o ídolo Dinheiro é o valor que mede todos os outros valores,
afirmando-se acima deles. Por isso, o Papa Francisco não se cansa de repetir,
na linha do que disse Jesus, que não é possível servir a Deus, Pai-Mãe de todos
os homens e mulheres, interessado no bem de todos, e servir o Dinheiro enquanto
o novo único deus. A financeirização especulativa da economia “mata” e faz um número
incontável de vítimas. A política tem, pois, de ser acompanhada da ética. E,
mais uma vez, precisamos urgentemente de uma Governança Global (não digo um
Governo Mundial). De facto, problema maior hoje é que os mercados são globais,
mas a política é local, nacional, quando muito, regional. Como se pode regular
assim os mercados?
7. Last but not least, é cada vez mais urgente o diálogo
inter-religioso, como desde há anos não se cansa de sublinhar o célebre teólogo
Hans Küng, autor principal da “Declaração para uma Ética Mundial”, aprovada
pelo Parlamento Mundial das Religiões em Chicago, em 1993: “Não haverá paz entre
as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem
diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios
éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos global,
um ethos mundial.” É claro: sem um novo ethos, isto é, sem uma nova atitude
ética, concretamente, sem justiça social global, continuará a violência, a
guerra, e não haverá paz.
Anselmo Borges no Diário de Notícias