Frei Bento Domingues |
«É verdade que ninguém dispõe de soluções prontas a servir a dignidade humana de todos. Mas ninguém devia dispensar a pergunta: eu não posso mesmo fazer nada?
O Papa Francisco faz o que pode, mas não nos pode substituir.»
1. Vamo-nos enganando e já não é pouco! Foi o comentário de um amigo à minha homilia de apresentação da Mensagem do Papa para o II Dia Mundial dos Pobres, no passado Domingo. Procurou fazer-me uma breve catequese de bom senso, pois ninguém tem uma receita eficaz para curar a história da nossa desumanidade. Mergulhados no mistério do tempo, cada um de nós vive, apenas, o pequeno intervalo entre o nascimento e a morte. Tanto vale acreditar que o mundo vai mudar para melhor como repetir que irá sempre de mal a pior. Os anúncios do avanço das ciências e das técnicas deixaram, há muito, de o entusiasmar. A quem vão eles servir? Oferecem, aos donos dos grandes negócios, novos instrumentos e condições para desenvolverem a concentração da riqueza e do poder económico, bélico e político. O mundo de todos em mãos de poucos.
Insistiu comigo: aquilo que o Papa diz e tenta fazer não resolve nada. O próprio Cristo, num momento de grande lucidez, arrumou com todas essas veleidades: pobres sempre os tereis entre vós! Estava escrito na Bíblia o que ele bem conhecia: não “haja pobres entre vós” e, no entanto, Jerusalém, a cidade santa, tinha-se tornado um grande centro de mendicidade.
Sei que as atitudes, os gestos e as palavras de Bergoglio não resolvem nada, mas também sei que ajudam muitas pessoas a resolverem-se a abandonar o cepticismo estéril e a interrogar-se: que posso eu fazer? Impede-nos de tapar os olhos e os ouvidos e de dizermos que não sabemos bem o que se passa. Recusando ou aceitando somos cúmplices, aliados ou indiferentes. O Papa não consente que forjemos um Deus que nos substitua e, por isso, há crianças, adolescentes, jovens e adultos que para serem felizes optam por hierarquizar as suas necessidades e desenvolver os seus talentos para vencerem a solidão e as situações difíceis de outras pessoas. Descobriram que havia estilos de vida mais divertidos e entusiasmantes do que o culto da estupidez consumista. Um estilo sóbrio de vida pode e deve ser mais divertido do que a peregrinação obrigatória a todos os restaurantes do Guia Michelin.
Jesus Cristo e o Papa Francisco passaram e passam por situações muito difíceis, mas são profundamente felizes ao terem libertado as suas pulsões e desejos tornando-se disponíveis para verem o mundo como a Casa Comum de toda a família humana, nossa família!
Bergoglio já tinha mostrado na Laudato Si que não podemos separar o clamor da devastação do planeta e o dos pobres. A escuta da terra e a dos pobres andam sempre juntas. Pertence, precisamente, à ecologia política mostrar que a crise ambiental e a crise social andam juntas.
A pobreza e a austeridade de S. Francisco não eram um ascetismo puramente exterior. Eram algo de mais radical: a renúncia a converter a realidade em mero objecto de uso e domínio, matando o encanto e a beleza do mundo. Mercantilizar todos os âmbitos da vida é instrumentalizar as relações humanas e a relação com a natureza. Nem tudo na vida humana se pode ou deve comprar e vender.
2. O Papa não inventou os factos. Em Setembro de 2015, os países reunidos na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) comprometeram-se com uma agenda de desenvolvimento até 2030. Nessa agenda havia um compromisso: acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares. Ou seja, os esforços devem apontar para o objectivo de fazer com que o rendimento mínimo diário de cada pessoa supere 1,25 dólares, índice que designa, actualmente, a linha da pobreza extrema.
Como estancar a reprodução das grandes desigualdades e da pobreza? Quando se diz que é o produto de escolhas políticas injustas que reflectem a desigual distribuição do poder na sociedade, não se abordam, de forma clara, as possibilidades concretas de alterar essas escolhas. Se não é possível erradicar a pobreza no mundo sem reduzir drasticamente os níveis de desigualdade, como conseguir esse objectivo? Diz-se que os níveis extremos de desigualdades interferem na capacidade do Estado e da sociedade redistribuírem o rendimento. Erguem barreiras à mobilidade social e mantêm parcelas da população à margem da economia.
Que fazer? Quem sabe não pode e quem pode não quer.
3. Estaremos, então, condenados ao imobilismo e a deixar livre o caminho para o abismo?
O relatório da ONU para o Desenvolvimento 2017 afirma que 6,5% da população global continuará na pobreza extrema até 2030, se a actual taxa de crescimento e políticas para o sector permanecerem inalteradas.
Segundo a ONU, são necessários novos esforços multilaterais para tirar 550 milhões de pessoas da situação de pobreza. Se isso não acontecer, os esforços para alcançar os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável serão fortemente prejudicados. Não se vence a pobreza até 2030 e os países menos desenvolvidos vão ficar muito abaixo das metas estabelecidas.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu acção imediata dos países para enfrentar o problema: “apesar dos grandes esforços na luta contra a pobreza, a desigualdade cresceu em todo o mundo. Os conflitos estão a aumentar. Outros problemas como as alterações climáticas, a insegurança alimentar e a escassez de água estão a colocar em risco os progressos alcançados nas últimas décadas.”
Os cépticos continuarão a dizer que, com ONU ou sem ONU, com o Papa Francisco ou sem o Papa Francisco, a situação dos pobres e dos remendos para a minorar é muito antiga e desencorajante. Os pobres, ao morrerem, continuarão a deixar, como herança aos seus descendentes, apenas a sua pobreza.
A condição humana é histórica, está a caminho, não está irremediavelmente condenada ou salva. Esquecemos que a desigualdade entre os seres humanos começa cedo. Uns nascem em berços de ouro, outros debaixo das pontes. O que lhe é próprio é não se render ao infortúnio, nem a nível individual, nem a nível social. Quando alguém não pode, precisa de quem o ajude e, para se realizar como humano, precisa de ajudar. Mas, sem uma dimensão política em que seja possível procurar uma vida de qualidade, em instituições justas, a nível individual e global, não há manta que chegue para todos.
É verdade que ninguém dispõe de soluções prontas a servir a dignidade humana de todos. Mas ninguém devia dispensar a pergunta: eu não posso mesmo fazer nada?
O Papa Francisco faz o que pode, mas não nos pode substituir.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO