domingo, 11 de novembro de 2018

Deus, livra-me de deus

Bento Domingues

«Ver crescer movimentos religiosos, com nome cristão, a proporem “como evangelistas” um anti-Evangelho, e o absoluto contrário das Bem-Aventuranças, exige que rezemos como Mestre Eckhart: Deus, livra-me desse deus.»

1. Seja em que campo for, ninguém tem boas razões para ser arrogante ou resignado. Não vimos de nós mesmos e precisaremos sempre dos outros para existir como humanos. A religião saudável nasce do acolhimento e da ousadia de imaginar e pensar. O dominicano José Augusto Mourão, professor de semiótica, dizia que a fórmula Eu encontrei Deus era obscena. Mas não é menos obscena a declaração do cientista ao decretar que Deus não existe por nunca se ter cruzado com ele na sua investigação. 
O texto religioso nasce no seio da interpretação da realidade do mundo em que vivemos e da convicção de que a sua dimensão empírica não esgota a complexidade do real. Há linguagens que sempre teimaram em sugerir o que é indizível e invisível nas práticas científicas. 
Como diz E. Schillebeeckx, a auto-revelação de Deus é dada em experiências humanas interpretadas. Nunca temos acesso à Palavra de Deus de modo imediato. Estritamente falando, a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas um conjunto de testemunhos de fé de crentes que se situam numa tradição particular da experiência religiosa. 
Para S. Tomás de Aquino, é muito razoável afirmar que Deus existe, mas saber como Deus é excede a capacidade humana. A preocupação da boa prática teológica consiste, sobretudo, em mostrar como Deus não é e como é ridículo transpor para Ele os nossos vícios e aberrações. 
A liturgia é uma celebração e a homilia não é uma aula de teologia. Mas deve haver muito cuidado na leitura e interpretação dos seus textos bíblicos. O Livro do Apocalipse é a obra poética mais subversiva que conheço e, como observa Frederico Lourenço, uma das verdadeiras obras-primas literárias da Bíblia. No fim da missa de Todos os Santos, veio ter comigo uma pessoa a lamentar o destaque que eu tinha dado a uma passagem desse grande poema. Ela já o tinha tentado ler e desistiu porque daquele delírio não se podia tirar nada de prático para o quotidiano da vida cristã.
Só lhe consegui dizer que ela estava a privar-se do encontro com o alfa e o ómega da terra e dos céus, com o maior desassossego e a mais alta consolação. Daquele que nos ama e liberta dos nossos erros e pecados. A força simbólica do Apocalipse é imensamente mais realista do que a escrita directa ou adocicada dos livros de espiritualidade mais divulgados ou das teologias de pacotilha. Grandes músicos e pintores – Bach, Messiaen, Miguel Ângelo, entre outros – ouviram e viram os sons e as cores da jubilosa esperança da incontável multidão vinda de todas as nações, tribos, povos e línguas, a quem Deus limpará todas as lágrimas! 
O Apocalipse é a liturgia dos que descobriram em Jesus Cristo o poeta cantor da vitória sobre a morte. Quem não acolher este livro, como subversão poética do convencionalismo doutrinário e dos lugares comuns da didáctica catequética, que o largue! 
O autor do Apocalipse é um anti derrotista: "Eu, João, vosso irmão e companheiro na tribulação, na realeza e na perseverança em Jesus, encontrava-me na ilha de Patmos por causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesus. No dia do Senhor, fui movido pelo Espírito e ouvi, atrás de mim, uma voz forte (...): 'Não tenhas medo! Eu sou o Primeiro e o Último; Aquele que vive. Estive morto; mas, como vês, estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da Morte e do Hades! Escreve, pois, as coisas que vês, as que estão a acontecer e as que vão acontecer, depois destas'" [1]. 
Este João não escreveu só o que estava a acontecer nas sociedades e nas igrejas do seu tempo. Foi mais longe: “vi um céu novo e uma nova terra. (...) Vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém, já preparada, qual noiva adornada para o seu esposo. E ouvi uma voz potente que vinha do trono e dizia: Esta é a morada de Deus entre os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo e o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. Ele enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor. Porque as primeiras coisas passaram. O que estava sentado no trono afirmou: Eu renovo todas as coisas. E acrescentou: Escreve, porque estas palavras são dignas de fé e verdadeiras” [2]. 
Não acredito que a morte possa ser o fim de todos os sonhos de vida, de todos os tempos e lugares. No fim da viagem Alguém espera por nós. 

2. Depois da leitura do Apocalipse e do canto do Salmo 23, a festa de Todos os Santos tinha ainda, para nos oferecer, um dos textos mais belos de toda a Bíblia: a 1ª Carta de João. É, pelo menos, a opinião de Frederico Lourenço e a minha. 
O seu autor declara, logo no começo, o motivo desta carta e do seu conteúdo: escrevemos estas coisas para que a vossa alegria seja completa. Fala dezoito vezes de amor, agápê, amor da pura generosidade, porque é essa a própria realidade de Deus: “Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor é de Deus; e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece Deus. Quem não ama, não conheceu Deus, porque Deus é amor. Nisto se manifestou o amor de Deus em nós: no facto de Deus ter enviado ao mundo o seu Filho Unigénito, para que vivamos n’Ele. Nisto está o amor: não porque nós amamos a Deus, mas porque Ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados. Amados, se Deus nos amou assim, também nós nos devemos amar uns aos outros” [3]. 
Que bom saber e sentir: “o admirável amor que o Pai nos consagrou em nos chamar filhos de Deus e somo-lo de facto” [4].

3. Esta festa de Todos os Santos é coroada pela narrativa das Bem-Aventuranças, segundo S. Mateus. É a súmula de toda a pregação de Jesus. Proclama que não estamos condenados a sofrer um mundo como ele está. Bem-aventurado quem começar já, a partir da situação em que se encontra, a trabalhar para um mundo outro. Não somos os eternos condenados ao exílio da infelicidade. Este poema é, por isso, uma convocatória a não nos rendermos à maldição presente do uso despudorado do nome de Deus. Um deus que manda odiar e matar, ao modo das piores passagens do Antigo Testamento, de alguns terríveis momentos da história da Igreja e de certas correntes e práticas do islamismo actual, esse deus que se mate. Mas não é tudo. Ver crescer movimentos religiosos, com nome cristão, a proporem “como evangelistas” um anti-Evangelho, e o absoluto contrário das Bem-Aventuranças, exige que rezemos como Mestre Eckhart: Deus, livra-me desse deus. 

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Cf. Ap 1, 9-20 
[2] Cf. Ap, 21 
[3] 1Jo 4, 7-11 
[4] 1 Jo 3, 1-3

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